2007-01-19

Noites do Demónio

Lua cheia. Noite de lobisomens, bruxas e demónios à solta pelas quebradas. O Ti’ Chico demorou-se pela taberna, depois de uma bela negociata das castanhas. Encostado ao balcão, com os conterrâneos, bebeu a bom beber uns quantos copos de meio quartilho, a regar conversas da terra, sobre este e aquele. A noite adiantou-se nas horas tardias e deu-lhes para contarem antigas histórias de lobisomens, almas penadas e demónios que alguém já vira em noites, como aquela, pelas encruzilhadas, a vaguear. Que era melhor ir para casa, recomendavam-lhe. O Ti’Chico já andara por caminhos enviesados noites e noites de Lua Cheia e nunca topara com tais mitos, não tinha medo de nada, a não ser dos vivos, alguns dos quais já lhe tinham feito frente por causa de algum negócio mal amanhado ou por via da água das poças que, em anos de seca, era mais valiosa que ouro. Multiplicaram-se os copos a correr sobre o balcão e as conversas endemoninhadas das noites misteriosas. Despediram-se, avançara a noite escura de estrelas cintilantes e uma luar de fazer chorar as pedras ressequidas. Cada um se sumiu nas curvas dos carreiros ladeados de muros de granito. O Ti’ Chico agarrou-se ao inseparável cajado, deu dois ou três passos para um lado, mais dois ou três para o outro e notou que ia andando bamboleante de um lado ao outro do caminho estreito. Lançou os olhos em frente e o cajado a ensinar-lhe o rumo e lá foi, cantarolando baixinho uma moda que ouvira na telefonia da tasca, baloiçando as pernas para cá e para lá. O caminho alongava-se na noite escura. Bendito luar que lhe alumiava a caminhada! Não tardaria a chegar à encruzilhada, onde tomaria a direcção de casa, virando à esquerda, por um labirinto de passagens apertadas.

Chegou à clareira e estacou, de repente, num equilíbrio duvidoso, abrindo e fechando os olhos. A visão turva não clareou, depois de esfregar as vistas e de abri-las, de novo. Fechava os olhos, abria-os, semicerrava-os e, no mesmo ângulo de visão perturbada dos vapores do álcool que emborcara sem conta nem medida, ali estava ele, o demónio, em figura de uma vaca gigantesca, castanha, de chifres no ar, desafiadora, no meio da encruzilhada, banhada pelo luar. Ah! Danado! Vinha o diabo do chifrudo postar-se naquela posição e impedi-lo de se arrimar a casa! T’arrenego! Cruzes! Benzeu-se, brandindo o Ti’ Chico o cajado no ar, direito ao demónio, à vaca, sabia lá ele, atarantado das pernas. Não compreendeu o que se passou: no segundo seguinte, não havia vivalma ou alma penada ou demónio na encruzilhada. Tremeu da cabeça aos pés, sem atinar se era medo se era da vinhaça… Por perto, sons tranquilos de uma noite de Lua Cheia. Apressou o passo preso, meteu-se em casa, aconchegou-se à mulher no quente dos lençóis de linho grosso e, antes de adormecer, ainda murmurou consigo: Demónio d’um raio!

Manhã cedo, cedinho, a cabeça ainda às voltas com o episódio da véspera, junto ao lume onde a mulher mexia o pó do café no púcaro de barro, entra-lhes pela cozinha dentro, afobado, o Ti’ Zé da Belga, se tinham visto a sua vaca Bonita, a danada, dera por falta dela, de madrugada, e andava a percorrer todos os casais, à procura, e nem sinais. À resposta negativa, nem esperou por uma malga de café, desandou dali para fora, quase a correr, a amaldiçoar a vaca e a vida. Não viu, portanto, o semblante pálido do Ti’ Chico, pedaço de pão com queijo numa mão, a navalha na outra e boca escancarada… Demónio da vaca!!!

Renda de Bilros, 17/01/2007

2007-01-11

…ainda há histórias felizes?

Ninguém dava nada por aquela relação. Estava tudo contra eles: a família, os amigos, os conhecidos, as circunstâncias. Lutaram contra todos com uma convicção de ideias fixas. Choraram, cada um para seu lado, as obrigadas separações e doíam-se da incompreensão em seu redor. O tempo, que dizem grande aliado para a cura de todos os males, inclusive males de amor, apenas acendia os sentimentos a cada dia que passava. Houve vezes, em que lutaram aberta e rotundamente. Mas depois, baixaram o tom e as razões, guardaram-nas só dentro de si. Passeavam na rua e sentiam ou parecia-lhes ouvir as vozes murmuradas e os olhares de soslaio numa crítica mordaz e invejosa, pequenina e mesquinha. Era então que se enchiam de forças ocultas, levantavam a cabeça, olhavam à volta, sem medos, e seguiam o caminho, calcando o chão, cheios de certezas. Perante passos tão decididos, a família aproximou-se, outra vez, devagarinho e os poucos amigos que restavam, os que valiam a pena, só queriam saber se, afinal, estavam felizes. Mudaram as circunstâncias e os conhecidos continuaram tão-só conhecidos.

Na sua casa, feita à sua medida, acordam juntos na mesma cama, como sempre haviam sonhado. O mundo anda lá por fora, com uma indiferença atroz, e aí giram todos os que não davam nada por aquela relação. Ele ri, quando, pela manhã, se cruzam, ela feita zombie, que o acordar é difícil, aliás, só acordará realmente, após o primeiro café curto, bem tiradinho, cheiroso. Vai decorrendo o dia, numa tranquilidade que impressiona, falam por olhares e adivinham-se os gestos. Muitos observam-nos, mortos de inveja, quando os vêem a passear, de mão dada, sem hesitações, trocando palavras, parando, de vez em quando, reparando num pormenor do jardim ou numa nuvem do céu, retomando o caminho, com a serenidade, que recuperaram, saídos dos combates travados.

Mas o momento maior do dia continua a ser a hora de embarcar no sono: fecham os olhos, para perceber que não sonham, sorriem, já às escuras, aconchegam-se e, naquele quarto, o mundo funde-se em harmonia…

Renda de Bilros, 10/01/2007

2007-01-04

Às vezes, o que parece...também é!

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Foto da camioneta do Senhor Presidente nos dias em que chovia muito.

"The sausages are coming"- Desenho de um menino, numa aula de Inglês, cujo tema era " O séquito do Senhor Presidente"

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Do autor:

Era uma vez um sítio aonde os meninos chegavam cedo, pouco passava das oito, despejados das camionetas que os iam recolhendo desde as sete pelas aldeias e estradas da vizinhança.
Nesse sítio, para além dos meninos (entenda-se o plural masculino como abrangente ou “os meninos” como sinónimo de crianças) lá viviam durante o dia outras pessoas: as “continas”, os funcionários da “secreteria”- uma sociedade secreta que trabalhava num local inacessível, ao postigo do qual, de vez em quando, assomava uma cara sem dentes, pois nunca se lhos viam, de um dos membros da tal sociedade secreta, isto é, uma funcionária da “secreteria”.
Há que dizer, porém, que a “secreteria” tinha, não um, mas dois postigos. O mais pequeno para os mais pequenos e o menos pequeno para os maiores – os setôres.
Para além destas pessoas, naquele sítio vivia também um senhor chamado Senhor Presidente. Um miúdo poderia ter feito uma composição que seria assim:


COMPOSIÇÃO

Quando soube o seu nome fiquei muito admirado, porque não sabia que havia senhores chamados Senhor Presidente! Foi a D.Rosa, “contina” do piso 1, que me disse como lhe “devia de chamar”.
Mas depressa me habituei a aprender isso e outras coisas.
Estava ali para que me ensinassem coisas novas. Tinham-me contado que aquele sítio servia para isso!
A D.Rosa era a mulher do senhor Senhor Presidente. Comecei a desconfiar quando, enquanto esperava o toque de uma campaínha que mal se ouvia, os vi frequentemente chegar lá ao sítio juntos, numa camioneta de caixa aberta – foi o meu pai que me disse que se chamava assim – cheia de madeiras atrás. De lá saíam o Senhor Presidente e a D.Rosa.
Recordo-me bem que atravessavam o pátio, sempre à mesma hora, depois de deixarem a camioneta no único lugar onde era permitido estacionar carros dentro do sítio.
E sei que era o único lugar porque mais ninguém deixava os carros lá dentro. Uma vez, houve até um setôr que chegou atrasado e nos disse que tinha ido pôr o carro bem longe, e até o ouvi dizer assim baixinho : “É sempre a mesma …”, mas depois não percebi mais porque ele falou ainda mais baixo e não ouvi bem
Bom, também achei muito engraçado dizerem que umas salas eram no Piso 1, porque sempre pensei que quando há um Piso 1 é porque há um Piso2, pelo menos! Mas não, foi outra matéria que aprendi rapidamente. Ali havia o Piso1 e os barracões que se chamavam Pavilhão A e B.O Pavilhão A tinha 4 salinhas muito engraçadas e fresquinhas de Verão. Eram engraçadas porquê? Eu vou contar. As mesas
não estavam todas juntas como as do Piso1, em cada salinha havia um espaço sem mesas. Quando chegou o Inverno é que percebi a razão de não haver mesas naqueles lugares. Assim, quando chovia, aparecia em cada saleta um alguidar de plástico daqueles que a minha mãe usa para a roupa. Mas era muito giro, porque não eram todos da mesma cor. Havia um amarelo na sala1, um azul na 2, um verde na 3 e um vermelho na 4. Soube depois que era para o Senhor Presidente saber, mais facilmente, onde é que chovia mais.
Igualmente vim a descobrir que fora a D.Rosa que lhe dera a ideia.Outra coisa de que me lembro bem é que a “secreteria” não atendia ninguém à Quinta-Feira, porque o senhor que tratava dos assuntos com os alunos, às quintas-feiras, ia sempre à caça com o Senhor Presidente que, logo pela manhã, trazia na camioneta os cães para a caça.
Num dia, eu estava no pátio e aproximei-me da camioneta do Senhor Presidente. Estavam lá dentro 3 cães a ladrar. Faziam muito barulho porque estavam fechados. De repente, apareceu o Senhor Presidente e disse-me assim:
- O que é que estás aqui a fazer? Não tivestes aula ou ficastes de castigo?
E eu, cheio de medo, respondi que estava a dizer aos cães para não fazerem tanto barulho para não perturbar os outros meninos e os setôres.

Ele coçou o bigode, que era muito grande!. Depois gritou comigo:
- Se calhar a tua mãe lá em casa ainda faz mais barulho a gritar com o bêbado do teu pai, que bem o vejo na tasca!...
E ainda me ralhou mais:
-Há-des dizer ao teu pai que quero falar com ele, ouvistes?
Há-des dizer-lhe que o quero cá, mas que não venha à quinta-feira! Percebestes bem? E agora, sai lá daqui que quero tirar o carro!...Devo de ir-me embora!
( nota de autor: Será que andou a ler Saramago?!)
Foi a primeira vez que ouvi a voz do Senhor Presidente e estranhei algumas palavras que ele disse, porque a minha setôra de Português estava sempre a insistir comigo e com outros colegas para não dizermos “fizestes”, “andastes”, “percebestes”,etc. e que não era “há-des” mas “hás-de”! Mas como sou esperto, eu acho!, aprendi que o Senhor Presidente podia dizer aquelas coisas que ninguém lhe dizia nada. E porquê? Porque era quem era, não era igual aos outros setôres ou às pessoas da “secreteria”!Ele tinha um outro nome, que ouvi a D.Rosa chamar-lhe uma vez, mas não me lembro, só recordo que era um nome igual a uma marca de salsichas que vi no supermercado uma vez! Ou era Tenoro…ou Isidoro…ou Toneca…não sei bem, mas era um desses!... Também não tem importância, porque ninguém o tratava assim, se calhar era alguma alcunha que a D.Rosa lhe pôs!... Sei lá, ás vezes gritavam tanto um com o outro, que os
setôres até tinham que interromper a explicação da matéria! Ah, por outra ocasião, ouvi um setôr dizer-lhe assim:
- “Você é um burro de gesso”,ou coisa parecida que não entendi bem, e ainda lhe disse mais.
- Você nem sequer diz “Bom Dia” ou “Boa Tarde” às pessoas!
E o Senhor Presidente, muito vermelho, dizia ao setôr:
- Veja lá a quem é que chama burro, que ainda lhe estauro um processo, ouviu?
Depois não sei mais nada porque nunca mais vi o tal setôr lá no sítio. Ouvi dizer que estava com baixa pisquiátrica, o que ainda não aprendi para dizer o que é!
De resto, gosto de andar lá no sítio, porque brinco sempre que não chove muito e não tenho Ginástica, que é uma coisa de que não gosto nada! Ah, lembrei-me agora de outra coisa! Também temos um refeitório onde como 3 vezes por semana, mas tenho tido azar porque apanho sempre doiradinhos e salada de fruta com maçã e uns bocadinhos de laranja. Quem manda a comida para o refeitório é uma irmã do Senhor Presidente.
E pronto, é assim o sítio onde eu ando a aprender!
P.S.- Aprendi isto( o P.S.) com a minha setôra de Português, da qual gosto muito porque não me grita nem chama nomes ao meu pai.
Adeus.

Nota finais do autor:
Esta história passou-se, de verdade, num país longínquo, onde os caciques locais ainda pululam.
O “setôr” a que o aluno se refere, emigrou para o Brasil onde detem, hoje, um empório de cachorros-quentes nas principais praias da Bahía em cujos areais, ao longo do ano, convive fraternalmente com os milhares de conterrâneos que lá passam férias. Consta que determinada marca de salsichas foi, por si, banida e NÂO ENTRA NA COMPOSIÇÃO dos seus afamados cachorros. Tal facto, a ser verdade, só confirma a veracidade do relato da converseta do ex-professor com o ainda Senhor Presidente.
A propósito deste, diz-se que adquiriu uma nova camioneta e 2 novos cães de caça, que igualmente desempenham funções remuneradas de guardas lá do sítio.
A D.Rosa é, hoje, Senhora Dona Rosa Chefe da “Secreteria” e já não usa puxo amarrado com um elástico.
À quinta-feira, a “secreteria” continua sazonalmente sem atendimento aos miúdos.
Os alguidares plásticos, mantendo as cores, são agora de barro vidrado, num exclusivo da Olaria do cunhado do Senhor Presidente, irmão mais novo da Senhora Dona Rosa.
Mais, quaisquer semelhanças entre nomes de personagens e/ou factos contidos nesta narrativa são mera coincidência, fruto da imaginação do autor, não servindo nunca de prova factual de desrespeito à autoridade estabelecida, seja onde for.


De: Jorge G - www.osinodaaldeia.blogspot.com