2007-04-25

25 de Abril de 1974

Acabei de ver um programa de homenagem ao Zeca Afonso na TV feito na Galiza, e fiquei com vontade de escrever. Não sei bem o quê. Mas a vontade é grande. É daquelas coisas que crescem cá dentro e que a partir de um certo tamanho precisam de sair. De alguma maneira. Então vieram-me à lembrança algumas memórias de 25 de Abril de 1974, um dia claro, bonito, com uma das mais belas alvoradas de sempre. A maior parte das pessoas preparavam-se para mais um dia tristonho, cinzento e escondido. Muitas pessoas esperavam, em celas de prisões, por liberdade. Muitas pessoas esperavam que os seus filhos não morressem em África. Muitas pessoas preparavam-se para mais um dia em que falariam às escondidas de outras pessoas. Muitas pessoas faziam contas às suas vidas e preparavam-se para sair de Portugal, também às escondidas, à procura de uma vida melhor ou para evitar que os seus filhos fossem para a guerra. Havia ainda alguém que imaginava o dia em que poderia sair à rua e gritar. Gritar tudo, muito, sem contenção, tudo o que lhe ia na alma. E que era bastante. Nessa manhã, porém, a luz do sol era diferente. Mais brilhante, mais clara e mais nítida, e com um poder mágico de fazer sorrir as mulheres e os homens, os velhos e os novos, os gordos e os magros, os altos e os baixos, os feios e os bonitos, os brancos, os pretos, os azuis, os amarelos, os verdes, os vermelhos e até os roxos. Então toda a gente veio para a rua. Era ver para crer. Para crer que era desta. Era desta que ia acabar a noite longa, os dias sem luz. Era desta que Portugal ia começar a ser justo, amigo do próximo, instruído, culto, saudável, crescido, desenvolvido, livre. Já os soldados estavam na rua. Desde bem cedo, ainda madrugada, os soldados saíram dos quartéis e dirigiram-se para os locais onde as sanguessugas moravam, essas sanguessugas que se alimentavam do povo e o enfraqueciam. Que faziam do povo, um povo triste, sem garra, sem sonhos. Para depois melhor poderem pisar, humilhar, prender ou matar, sempre que fosse necessário. O povo apercebeu-se imediatamente e juntou-se ainda mais nas ruas, agora ao lado dos soldados. Era preciso ajuda? o povo está aqui, ao vosso lado, para o que der e vier. Vamos aproveitar, não haverá outra oportunidade. Os soldados agradeceram. Agradeceram a força do povo, que era muita, era tanta força que era desconhecida por muitos até então. Os soldados agradeceram as sandes, a água, o vinho, as sopas, os sorrisos, as palavras de incentivo. Mas sobretudo a alegria. A alegria imensa que rejuvenesce, que não mente porque é franca, que nos enche o espírito de ideias e projectos e que nos dá o dom da compreensão quando olhamos para o outro e nos vemos a nós próprios. De repente, alguém trouxe cravos. Vermelhos. E as pessoas agarraram nos cravos e puseram-nos nas pontas das espingardas.

José Leitão, 25 de Abril de 2007

Etiquetas: ,

5 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Lembrar Abril é a melhor forma de enriquecer este país.
25 de Abril, Sempre

3:05 da manhã  
Blogger Meg said...

Também vi... Também me deu que pensar...
Porque não cá?
Claro que sei...
Mas falta dizer que nas memórias evocadas havia também muita incerteza, muita estupefacção, e algum medo, porque havia muitas casacas para mudar, e pouco tempo para o fazer... Lembram-se?

8:53 da manhã  
Blogger tb said...

já li no kaos e achei uma delícia.
Bjinhos

5:22 da tarde  
Blogger Laurentina said...

Que saudade imensa sinto desses tempos irrequietos , cheios de ingenuidade política, pureza ideológica e de sentimentos ...enfim coisas que os socretinos nunca sentiram , nem sabem o que foi na realidade , já que lhes foi caíndo tudo no prato da sopa...
Bom fim de semana
beijão grande

9:16 da tarde  
Blogger rendadebilros said...

... e fizeste muito bem em escrever!!! como sempre!

5:22 da tarde  

Enviar um comentário

<< Home