Acabei de ver um programa de homenagem ao Zeca Afonso na TV feito na Galiza, e fiquei com vontade de escrever. Não sei bem o quê. Mas a vontade é grande. É daquelas coisas que crescem cá dentro e que a partir de um certo tamanho precisam de sair. De alguma maneira. Então vieram-me à lembrança algumas memórias de 25 de Abril de 1974, um dia claro, bonito, com uma das mais belas alvoradas de sempre. A maior parte das pessoas preparavam-se para mais um dia tristonho, cinzento e escondido. Muitas pessoas esperavam, em celas de prisões, por liberdade. Muitas pessoas esperavam que os seus filhos não morressem em África. Muitas pessoas preparavam-se para mais um dia em que falariam às escondidas de outras pessoas. Muitas pessoas faziam contas às suas vidas e preparavam-se para sair de Portugal, também às escondidas, à procura de uma vida melhor ou para evitar que os seus filhos fossem para a guerra. Havia ainda alguém que imaginava o dia em que poderia sair à rua e gritar. Gritar tudo, muito, sem contenção, tudo o que lhe ia na alma. E que era bastante. Nessa manhã, porém, a luz do sol era diferente. Mais brilhante, mais clara e mais nítida, e com um poder mágico de fazer sorrir as mulheres e os homens, os velhos e os novos, os gordos e os magros, os altos e os baixos, os feios e os bonitos, os brancos, os pretos, os azuis, os amarelos, os verdes, os vermelhos e até os roxos. Então toda a gente veio para a rua. Era ver para crer. Para crer que era desta. Era desta que ia acabar a noite longa, os dias sem luz. Era desta que Portugal ia começar a ser justo, amigo do próximo, instruído, culto, saudável, crescido, desenvolvido, livre. Já os soldados estavam na rua. Desde bem cedo, ainda madrugada, os soldados saíram dos quartéis e dirigiram-se para os locais onde as sanguessugas moravam, essas sanguessugas que se alimentavam do povo e o enfraqueciam. Que faziam do povo, um povo triste, sem garra, sem sonhos. Para depois melhor poderem pisar, humilhar, prender ou matar, sempre que fosse necessário. O povo apercebeu-se imediatamente e juntou-se ainda mais nas ruas, agora ao lado dos soldados. Era preciso ajuda? o povo está aqui, ao vosso lado, para o que der e vier. Vamos aproveitar, não haverá outra oportunidade. Os soldados agradeceram. Agradeceram a força do povo, que era muita, era tanta força que era desconhecida por muitos até então. Os soldados agradeceram as sandes, a água, o vinho, as sopas, os sorrisos, as palavras de incentivo. Mas sobretudo a alegria. A alegria imensa que rejuvenesce, que não mente porque é franca, que nos enche o espírito de ideias e projectos e que nos dá o dom da compreensão quando olhamos para o outro e nos vemos a nós próprios. De repente, alguém trouxe cravos. Vermelhos. E as pessoas agarraram nos cravos e puseram-nos nas pontas das espingardas. José Leitão, 25 de Abril de 2007
Etiquetas: 25 de Abril, conto real
5 Comments:
Lembrar Abril é a melhor forma de enriquecer este país.
25 de Abril, Sempre
Também vi... Também me deu que pensar...
Porque não cá?
Claro que sei...
Mas falta dizer que nas memórias evocadas havia também muita incerteza, muita estupefacção, e algum medo, porque havia muitas casacas para mudar, e pouco tempo para o fazer... Lembram-se?
já li no kaos e achei uma delícia.
Bjinhos
Que saudade imensa sinto desses tempos irrequietos , cheios de ingenuidade política, pureza ideológica e de sentimentos ...enfim coisas que os socretinos nunca sentiram , nem sabem o que foi na realidade , já que lhes foi caíndo tudo no prato da sopa...
Bom fim de semana
beijão grande
... e fizeste muito bem em escrever!!! como sempre!
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