Memórias do país da má memória

O país era pequeno mas vivia remediado. Não havia nem fome nem fartura. Ou pelo menos havia uma fome relativa como a dos que pescavam e só comiam peixe com pão, porque só tinham dinheiro para comprar pão; ou os que cultivavam os campos só comiam sopas de pão com azeite ou legumes, ou batatas, consoante fosse a época de maior fartura de uma ou outra coisa. Carne era só em dia de festa, quando se matava o porco e se salgavam as carnes que depois eram racionadas ao longo do ano. Fome havia-a às vezes, quando o tempo não ajudava à saída dos barcos para o mar, ou quando estragava as colheitas… Frio também havia, porque o dinheiro era pouco para sapatos e abafos. Mas depois vinha a Primavera, o sol e o Verão e voltava a haver fruta para dar e vender e ânimo para viver, apesar do suor do trabalho de sol a sol.
Falava-se à boca fechada na Velha. A Velha mandava em tudo no país. Fosse ou não fosse digna de respeito, o certo é que se fazia respeitar pois todos tinham medo dela. Contava-se que quem era contra ela ia parar à prisão e às vezes desaparecia sem deixar rasto. Havia certas palavras que não se podiam dizer, nem mesmo na casa de Deus, ou melhor, muito menos na casa Dele. Uma vez um padre novo lá na terra tinha falado na paz e na igualdade dos homens e na missa seguinte tinham lá aparecido uns homens de óculos escuros que nunca ninguém houvera visto na aldeia. O padre desapareceu e veio outro mais velho que assustava velhos e crianças com os seus sermões. Dizia que o outro padre era um chibo vermelho que tinha ido parar ao Inferno. Havia pessoas que faziam as suas trouxas e ia para longe refazer as suas vidas. Passado tempos voltavam estranhos e ricos, traziam filhos que falavam estrangeiro e construíam casas enormes para que todos reparassem nelas. Um dia até chegou um que vinha num carro enorme e que se entretinha a levar as crianças da aldeia a passear com ele para lhes mostrar como falava por um microfone com a sua mulher que estava em casa: “Alô Maria! Alô, um, dois, três, raporta para aqui!” No final das férias regressavam para esses outros países longínquos deixando o povinho com um misto de inveja e de saudade.
Era assim a vida mas de repente tudo mudou. Dizem que não há fome que não dê
Kaótica, 02/05/2007
Etiquetas: conto
5 Comments:
Conto triste, este, Kaótica... Lembro-me dum país como esse.
Mas agora, nesse país que eu conheço, as pessoas são como a fruta... normalizadas.
Bonitas por fora, e todas do mesmo tamanho, vê lá que até lhes dão brilho. Mas por dentro, sabe tudo ao mesmo, são normalizadas também.
Não se distinguém. Perderam a identidade, ou o sabor, como queiras.
As necessidades do dispensável fizeram deles, hoje, as grandes cobaias nas mãos dos senhores duma coisa que se chama Banca.
E mesmo assim, são felizes... dizem que são proprietárias disto e daquilo... proprietárias, imagina!
Um abraço
Um país que se descobriu mas que não era ainda o caminho certo do provir...
Gostei do teu conto, amiga. Obrigada pelas tua palavras no linhas. Quem sabe um dia destes recebes algo no e-mail?! :)
Beijinhos mil
Fizeste-me pensar - fazes-me sempre pensar muito! - que , em tempos , as pessoas nem percebiam que não eram felizes , mas agora , precisam de muitas coisas para encontrarem a felicidade... como há sempre algo de novo que têm que ter , a vida esgota-se-lhes nesse sorvedouro de falta de tempo e de falta de coisas para serem felizes... a vida , outrora, era difícil porque não havia nada , agora porque há a ilusão de que se pode ter tudo!!!
Adorei o conto!
Beijos.
Pois é ...
Beijão grande
Kaótica,
O conto é perfeito! Mostra o fascismo de governos ditadores num primeiro momento... Entretanto, a máscara da hipocrisia se rompe e as manifestações, em prol da liberdade e fraternidade,finalmente prevalece.
Abraços tupiniquins. Fica em paz!
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