2007-01-04

Às vezes, o que parece...também é!

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Foto da camioneta do Senhor Presidente nos dias em que chovia muito.

"The sausages are coming"- Desenho de um menino, numa aula de Inglês, cujo tema era " O séquito do Senhor Presidente"

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Do autor:

Era uma vez um sítio aonde os meninos chegavam cedo, pouco passava das oito, despejados das camionetas que os iam recolhendo desde as sete pelas aldeias e estradas da vizinhança.
Nesse sítio, para além dos meninos (entenda-se o plural masculino como abrangente ou “os meninos” como sinónimo de crianças) lá viviam durante o dia outras pessoas: as “continas”, os funcionários da “secreteria”- uma sociedade secreta que trabalhava num local inacessível, ao postigo do qual, de vez em quando, assomava uma cara sem dentes, pois nunca se lhos viam, de um dos membros da tal sociedade secreta, isto é, uma funcionária da “secreteria”.
Há que dizer, porém, que a “secreteria” tinha, não um, mas dois postigos. O mais pequeno para os mais pequenos e o menos pequeno para os maiores – os setôres.
Para além destas pessoas, naquele sítio vivia também um senhor chamado Senhor Presidente. Um miúdo poderia ter feito uma composição que seria assim:


COMPOSIÇÃO

Quando soube o seu nome fiquei muito admirado, porque não sabia que havia senhores chamados Senhor Presidente! Foi a D.Rosa, “contina” do piso 1, que me disse como lhe “devia de chamar”.
Mas depressa me habituei a aprender isso e outras coisas.
Estava ali para que me ensinassem coisas novas. Tinham-me contado que aquele sítio servia para isso!
A D.Rosa era a mulher do senhor Senhor Presidente. Comecei a desconfiar quando, enquanto esperava o toque de uma campaínha que mal se ouvia, os vi frequentemente chegar lá ao sítio juntos, numa camioneta de caixa aberta – foi o meu pai que me disse que se chamava assim – cheia de madeiras atrás. De lá saíam o Senhor Presidente e a D.Rosa.
Recordo-me bem que atravessavam o pátio, sempre à mesma hora, depois de deixarem a camioneta no único lugar onde era permitido estacionar carros dentro do sítio.
E sei que era o único lugar porque mais ninguém deixava os carros lá dentro. Uma vez, houve até um setôr que chegou atrasado e nos disse que tinha ido pôr o carro bem longe, e até o ouvi dizer assim baixinho : “É sempre a mesma …”, mas depois não percebi mais porque ele falou ainda mais baixo e não ouvi bem
Bom, também achei muito engraçado dizerem que umas salas eram no Piso 1, porque sempre pensei que quando há um Piso 1 é porque há um Piso2, pelo menos! Mas não, foi outra matéria que aprendi rapidamente. Ali havia o Piso1 e os barracões que se chamavam Pavilhão A e B.O Pavilhão A tinha 4 salinhas muito engraçadas e fresquinhas de Verão. Eram engraçadas porquê? Eu vou contar. As mesas
não estavam todas juntas como as do Piso1, em cada salinha havia um espaço sem mesas. Quando chegou o Inverno é que percebi a razão de não haver mesas naqueles lugares. Assim, quando chovia, aparecia em cada saleta um alguidar de plástico daqueles que a minha mãe usa para a roupa. Mas era muito giro, porque não eram todos da mesma cor. Havia um amarelo na sala1, um azul na 2, um verde na 3 e um vermelho na 4. Soube depois que era para o Senhor Presidente saber, mais facilmente, onde é que chovia mais.
Igualmente vim a descobrir que fora a D.Rosa que lhe dera a ideia.Outra coisa de que me lembro bem é que a “secreteria” não atendia ninguém à Quinta-Feira, porque o senhor que tratava dos assuntos com os alunos, às quintas-feiras, ia sempre à caça com o Senhor Presidente que, logo pela manhã, trazia na camioneta os cães para a caça.
Num dia, eu estava no pátio e aproximei-me da camioneta do Senhor Presidente. Estavam lá dentro 3 cães a ladrar. Faziam muito barulho porque estavam fechados. De repente, apareceu o Senhor Presidente e disse-me assim:
- O que é que estás aqui a fazer? Não tivestes aula ou ficastes de castigo?
E eu, cheio de medo, respondi que estava a dizer aos cães para não fazerem tanto barulho para não perturbar os outros meninos e os setôres.

Ele coçou o bigode, que era muito grande!. Depois gritou comigo:
- Se calhar a tua mãe lá em casa ainda faz mais barulho a gritar com o bêbado do teu pai, que bem o vejo na tasca!...
E ainda me ralhou mais:
-Há-des dizer ao teu pai que quero falar com ele, ouvistes?
Há-des dizer-lhe que o quero cá, mas que não venha à quinta-feira! Percebestes bem? E agora, sai lá daqui que quero tirar o carro!...Devo de ir-me embora!
( nota de autor: Será que andou a ler Saramago?!)
Foi a primeira vez que ouvi a voz do Senhor Presidente e estranhei algumas palavras que ele disse, porque a minha setôra de Português estava sempre a insistir comigo e com outros colegas para não dizermos “fizestes”, “andastes”, “percebestes”,etc. e que não era “há-des” mas “hás-de”! Mas como sou esperto, eu acho!, aprendi que o Senhor Presidente podia dizer aquelas coisas que ninguém lhe dizia nada. E porquê? Porque era quem era, não era igual aos outros setôres ou às pessoas da “secreteria”!Ele tinha um outro nome, que ouvi a D.Rosa chamar-lhe uma vez, mas não me lembro, só recordo que era um nome igual a uma marca de salsichas que vi no supermercado uma vez! Ou era Tenoro…ou Isidoro…ou Toneca…não sei bem, mas era um desses!... Também não tem importância, porque ninguém o tratava assim, se calhar era alguma alcunha que a D.Rosa lhe pôs!... Sei lá, ás vezes gritavam tanto um com o outro, que os
setôres até tinham que interromper a explicação da matéria! Ah, por outra ocasião, ouvi um setôr dizer-lhe assim:
- “Você é um burro de gesso”,ou coisa parecida que não entendi bem, e ainda lhe disse mais.
- Você nem sequer diz “Bom Dia” ou “Boa Tarde” às pessoas!
E o Senhor Presidente, muito vermelho, dizia ao setôr:
- Veja lá a quem é que chama burro, que ainda lhe estauro um processo, ouviu?
Depois não sei mais nada porque nunca mais vi o tal setôr lá no sítio. Ouvi dizer que estava com baixa pisquiátrica, o que ainda não aprendi para dizer o que é!
De resto, gosto de andar lá no sítio, porque brinco sempre que não chove muito e não tenho Ginástica, que é uma coisa de que não gosto nada! Ah, lembrei-me agora de outra coisa! Também temos um refeitório onde como 3 vezes por semana, mas tenho tido azar porque apanho sempre doiradinhos e salada de fruta com maçã e uns bocadinhos de laranja. Quem manda a comida para o refeitório é uma irmã do Senhor Presidente.
E pronto, é assim o sítio onde eu ando a aprender!
P.S.- Aprendi isto( o P.S.) com a minha setôra de Português, da qual gosto muito porque não me grita nem chama nomes ao meu pai.
Adeus.

Nota finais do autor:
Esta história passou-se, de verdade, num país longínquo, onde os caciques locais ainda pululam.
O “setôr” a que o aluno se refere, emigrou para o Brasil onde detem, hoje, um empório de cachorros-quentes nas principais praias da Bahía em cujos areais, ao longo do ano, convive fraternalmente com os milhares de conterrâneos que lá passam férias. Consta que determinada marca de salsichas foi, por si, banida e NÂO ENTRA NA COMPOSIÇÃO dos seus afamados cachorros. Tal facto, a ser verdade, só confirma a veracidade do relato da converseta do ex-professor com o ainda Senhor Presidente.
A propósito deste, diz-se que adquiriu uma nova camioneta e 2 novos cães de caça, que igualmente desempenham funções remuneradas de guardas lá do sítio.
A D.Rosa é, hoje, Senhora Dona Rosa Chefe da “Secreteria” e já não usa puxo amarrado com um elástico.
À quinta-feira, a “secreteria” continua sazonalmente sem atendimento aos miúdos.
Os alguidares plásticos, mantendo as cores, são agora de barro vidrado, num exclusivo da Olaria do cunhado do Senhor Presidente, irmão mais novo da Senhora Dona Rosa.
Mais, quaisquer semelhanças entre nomes de personagens e/ou factos contidos nesta narrativa são mera coincidência, fruto da imaginação do autor, não servindo nunca de prova factual de desrespeito à autoridade estabelecida, seja onde for.


De: Jorge G - www.osinodaaldeia.blogspot.com

9 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Que delicioso!!! Quer dizer, a maneira como contas este conto, porque bem percebi que não tinha nada, mesmo nadinha a ver com alguma realidade de nenhum país conhecido, tu bem o sublinhas...
Fiz estágio numa Escola em que se passava uma cena igual à do conto sem os alguidares. A primeira vez que senti os pés das pequenas criaturas a chapinhar no chão nem queria acreditar... Nesse local, agora há uma Escola nova, que construíram, depois de o Conselho Directivo ( anos depois desse tal estágio) se ter demitido porque os pavilhões provisórios funcionavam havia vinte anos... ali para os aldos do Mondego!!!
Adorei!

7:55 da tarde  
Blogger Jorge P. Guedes said...

AH! Apanhei-te!

Somos, então, colegas! E posso saber o que dás tu? Será E.V.T.? Será Português? Ou será que és do 1º Ciclo e dás tudo e mais alguma coisa?

Na verdade, esta historieta pode retratar muitas escolas de um país longínquo, claro...

E será que ela se baseou em factos reais? Reais e ficcionados? Ou será total ficção e delírio de um autor à procura de leitores?

Aceitam-se apostas.

Com que então coleguinha, hein?

Um abraço, sua renda de bilros...

6:21 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Jorge
Não sei a razão de tanta espanto... eu já não tinha dito que tínhamos mais em comum do que tu imaginavas!!! sagitários com um blogue ( no teu caso sete...ou são mais ), em idades próximas ... e ainda não sabia eu o apelido começado por P...( quem sabe se não somos mesmo primos, ainda hei-de descobrir...não terás antepassados lá por Baião, ou Resende?) ...
Português, meu caro, Português!!!
Aposto que agarraste em várias cenas verdadeiras e as colaste muito bem coladinhas...saiu um primor!!! Os Sagitários também deliram e muito...

2:26 da tarde  
Blogger Kaotica said...

Mil desculpas pela ausência mas tenho andado com problemas que me impedem de ter cabeça para os blogs. São fases. Agora já está tudo nos conformes.
Boa estratégia narrativa. Gostei! E olha que me deste umas ideias...
Bjos!

3:09 da manhã  
Blogger Outsider said...

Que belo e delicioso conto Jorge. Adorei as expressões "burro de gesso" e "estauro um processo", faz-me lembrar um mail que recebi com um jogador de futebol a dizer que tinha que "danificar a camisola". Mas este conto vai muito mais fundo, revela o que se passa de facto em algumas zonas do interior desse país "longínquo"...
Gostei muito.
Um Abraço.

10:27 da manhã  
Blogger Outsider said...

rendadebilros:

Eu tenho antepassados em Resende! O meu avô era de S. João de Fontoura e a minha avó de S. Martinho de Mouros. Se calhar conhecemo-nos...
Um Abraço.

10:28 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

outsider
Se calhar os nossos antepassados andaram por lá juntos naquelas terras... Mas eu não me movimento muito, por essas bandas, faço-o mais em documentos antigos...Espreitando os meus papéis, do lado da minha mãe, tenho antepassados em Cárquere, Rendol e Canizes. Do lado do meu pai, Cárquere, Anreade, por acaso, em 1716, há uma senhora de S. João de Fontoura, outros de Cinfães... Mas os mais próximos são de S. Tomé de Covelas e Santa Marinha do Zêzere...Queres ver que ainda somos parentes? E se eu te disser que descendo de um grande amigalhaço de D. Afonso Henriques ou vais achar que te estou a contar um conto?
Um abraço.

4:54 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Belíssimo conto,Jorge.

2:19 da manhã  
Blogger Outsider said...

Rendadebilros:
Não duvido nada que sejamos parentes. Sempre que vou à aldeia descubro que sou parente afastado de quase toda a gente...
Quem me dera ter acesso a documentos dos meus antepassados como os que tu tens... Adoraria saber a história da genealogia da minha família.
Quanto a seres descendente de um amigalhaço do D. Afonso Henriques, não dúvido de maneira nenhuma.
Um Abraço.

1:42 da tarde  

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