2007-06-05

Rei azteca (a.T.- antes da era telemóvel)

Sad Young Man on a Train, Marcel Duchamp


Grenoble ardia sob uma canícula insuportável. Ao longe, os Alpes paradoxalmente cobertos de neve. Nacionalidades várias, grupos diversos. A viajar e a falar francês. Ela, de nacionalidade grega. Ou talvez, portuguesa. Falavam de um país de sol, e todos pensavam na Grécia, só depois, em Portugal. Ele, mexicano. Encontraram-se pela primeira vez no autocarro, rumo a Besançon. Sentaram-se ao lado um do outro e discursaram sobre a paisagem, hesitando entre o espanhol e o francês. Passearam, embevecidos, pelas ruas antiquíssimas, sem ouvir explicação nenhuma da visita guiada. No meio dos colegas todos, isolaram-se do mundo inteiro. Ela começou a chamar-lhe o seu rei azteca, ele sorria, moreno, alto e olhos negros, palavras cor de chocolate. No regresso, poucas palavras. Deixavam falar o olhar que, de quando em quando, se desviava para fora, para as montanhas. Antes de se separarem, sentaram-se no banco de um jardim, mudos e quedos, tocavam-se os olhos, no silêncio do calor impossível.

Outro dia, à passagem por Lyon e a percorrer as Galerias La Fayette, ele não apareceu. Chegou, ansioso, no fim de semana posterior, na viagem para o Vercors. Palavras ditas sem nexo, numa torrente sem parar, num pânico de falta de tempo para dizer tanto em tão poucas horas. No Museu da Resistência, ele amparou-a, ao vê-la perturbada, perante os testemunhos reais de uma História palpável que apenas soubera em livros e em documentários. E, no domingo, para se dessedentarem, acamparam na esplanada da Place Grenette, pediram uma menthe à l’eau e por ali ficaram com os amigos a (des)conversar de coisa nenhuma, num torpor de que acordaram ao final da tarde, descia a noite sobre a Cidade Olímpica. O seu rei azteca iluminava as sombras quentes e as suas mãos procuraram as dela para combinarem encontrar-se na Estação, no momento da partida para os respectivos países. Entre abraços e beijos de uns e outros, espanhóis, jugoslavos, gregos, belgas, italianos, finlandeses, talvez uma portuguesa ou uma grega, a euforia da volta a casa misturava-se num travo agridoce: a emoção daquele Verão numa torre de Babel moderna não ia repetir-se nunca mais…

Estação, chegadas e partidas, avisos, malas, confusão, vozes, gritos, risadas, segredos, mãos entre as mãos. Hora da partida a avançar em fúria enlouquecida… O seu rei azteca que não chegava. Ela, entontecida, tanto reboliço, tantas línguas, tanta loucura, tanto ruído… E ele que não vinha… Anunciavam a hora da partida do comboio que o devia levar … e ele que não … Lá vinha ele, alto, moreno, o seu rei azteca… Teve apenas tempo de abraçar os amigos, rapidamente. Junto dela, num momento, prendeu-lhe as mãos e beijou-a, breve , brevemente, com sabor a chocolate, num amor fugidio do pino do Verão. E correu… O comboio deslizou devagar, depressa, muito depressa e ele, a rir, a acenar escandalosamente da janela, longe, cada vez mais longe…

E, de repente, petrificada, no meio da gare de Grenoble, num sobressalto de pavor e impotência, abafou um grito: não sabia nada dele, nem uma direcção, nem um número de telefone, nem o seu nome, apenas era o seu rei azteca… e esse partia naquele comboio, a acenar-lhe, lá ao longe, cada vez mais longe, para sempre…

Renda de Bilros, 04/06/2007

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2007-06-04

(A)casos

Imagem tirada daqui

Etelvina ia pela rua a cantarolar dentro da sua cabeça . A Etelvina que eu conheço não tem nada , mesmo nadinha a ver com a do Sérgio Godinho, aquela que, “com seis meses já se tinha de pé…” , embora ela até saiba a letra de cor. Então, ia ela com uma canção a repetir-se dentro da cabeça e, por acaso até nem era aquela atrás referida… Seguia descontraída e despreocupada e olhava num relance para as montras das lojas sem lhes prestar grande atenção. No entanto, chegou à porta da florista e abrandou o passo. Inclinou a cabeça e admirou através do vidro da enorme janela as flores expostas, as cores, os feitios … e , nisto, alguém de dentro da loja , numa alegria transbordante acenava-lhe risos e sinais de mãos… os olhos brilharam-lhe da surpresa, entrou e beijou a amiga numa efusão de saudades e de gargalhadas. Arrastaram-se uma à outra para um café próximo a atropelar as palavras, as vidas vividas, enquanto separadas, entremeadas sempre de espantos e risadas e abraços. Estiveram nisto metade da tarde: a trocar risos e detalhes da vida. A certa altura, começaram a cruzar os dados do percurso de vida de cada uma e chegaram à conclusão de que nunca n(est)a vida tinha havido a mínima probabilidade de se terem encontrado antes. Separaram-se ainda alegres , mas cheias de interrogações. Nunca mais se voltaram a encontrar depois deste episódio.

A Etelvina jura ainda hoje, anos volvidos, que ambas tinham a certeza absoluta de que se conheciam…

Rendadebilros, 01/06/2007

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2007-06-01

Quem Tem Medo de Lagarta Verde?

O menino e a menina tinham estado em casa tempo demais porque lá fora tinha chovido sem parar. Foi então que apareceu o arco-íris e a chuva quase parou de cair. Já não era quase chuva, só umas pingas do céu. O arco-íris veio para ficar e deu tempo a sair à rua para poderem vê-lo. O menino depressa se cansou de olhar para o céu e viu uma enorme lagarta verde. Rápido, com o seu poder de mexer em lagartas ergueu-a no ar dizendo olha, toma! A menina olhou e gritou (ou será que gritou e olhou?); o que importa é que ficou o grito a dar três voltas no espaço e os cabelos da menina em pé, pelo susto. A menina tinha uma saia aos corações e falava de amor, mas não gostava de lagartas verdes - e das grandes - perto de si. O menino largou o bicho que caiu mole e ficou no seu enrola- desenrola, até cansar. A menina perguntou e agora com’é qu’ eu passo? Mas o menino fez que nem ouviu, tal como ela às vezes também lhe fazia. Seguiu ligeiro para a frente à procura de mais coisas para pegar e largar. A menina deu um salto enorme por cima da lagarta que agora no chão já nem parecia tão grande como isso. Entretanto vinha o sol a aparecer e reflectia-se nas poças de água que a chuva tinha feito. Pensou: as nuvens caíram em chuva e ficaram poças. A lagarta prosseguiu o seu caminho sempre verde. Mas que mal lhe tinha corrido o dia hoje... que grande susto lhe pregara o miúdo. Tinha a sorte de não ter ouvidos para os gritos da menina. Senão, podia até morrer do coração.

Kaótica, s.d.

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