2007-02-03

Carlos

Conheci o Carlos quando atravessava um período difícil da minha vida. Estava numa espécie de limbo entre o desejo de independência e o fracasso impotente do desemprego. O meu corpo estava fechado a sete chaves conservando uma virgindade que já não existia. O meu espírito individualizava-se cioso de não mais sofrer o términos da partilha. Não era feliz, acreditava que a felicidade eram momentos de ilusões que já não tinha. Qualquer olhar de homem era sentido como uma ameaça à falsa estabilidade que projectara. Não havia de ser eu a procurar o que me pudesse vir a magoar. O passar dos anos já me tinha ensinado que não é preciso correr atrás da infelicidade para ela acontecer. Evitava qualquer relação que pudesse vir a ser sentimental, mesmo de amizade. Mantinha para com todos uma cordialidade circunspecta. Distanciava-me sempre que qualquer tipo de envolvimento emocional se pressentisse. Na altura fugia a sete pés das conversas que descambassem na intimidade. Construira a toda a volta uma carapaça de superficialidade que só cedia o estritamente necessário ao bom dia, boa noite de circunstância.

Bom dia, disse-me, ao entrar na sala de espera. Bom dia, respondi num abrir e fechar de olhos. Retirou da mesa uma revista e começou a folheá-la. Involuntariamente observei-lhe um ar risonho, divertido com a revista. Dei por mim a querer pensar como seria cretino ao exibir tanto prazer com a revoltante revista de sala de espera. Às tantas não se aguentou e exprimiu-se numa leve gargalhada. Que entusiasmo, pensei agoniada. Mas aquele homem dirigiu-se a mim como se me conhecesse.
A moda Primavera-Verão é de chorar a rir, já reparou? Mostrou-me uma fotografia de uma mulher camuflada num macacão largo amarelo metálico, o cabelo sintético, os olhos viperinos sombreados de negro, um capacete. Uma diva do século 22, com um ar tão doente e viciado como a Humanidade. Disse-lhe, é o retrato da Humanidade. Mostrou-se interessado pelas minhas cortantes palavras tomando-as como uma definição de Moda, confundindo-as com o início de uma conversa. Dirigia-se-me com um ar tão familiar que subvertia todas as minhas tentativas de me furtar ao diálogo. Quando me perguntou se me estava a incomodar, respondi que não porque apesar de tudo nunca tinha aprendido inteiramente a dizer que não, ao ser abordada de uma maneira tão frontal.
Logo naquela noite sonhei com o homem. Havia um estranho fato espacial que nos envolvia, do qual saíam as nossas duas cabeças, como se pertencessem ao mesmo corpo. Vinha uma corrente de ar e levava-nos pelo espaço insuflados como um balão. Depois subitamente tínhamos os pés unidos e estávamos nus numa terra devastada. Começou a cair muita água em cima de nós e começámos a crescer um para o outro como árvores entrelaçando os nossos ramos agora fortalecidos. A semente estava lançada.
No outro dia acordei diferente. Desconhecia a explicação do sonho mas nem isso me perturbou. Sentia uma alegria inexplicável irradiando de dentro do meu ser e nem procurei explicação.

Mais tarde voltei a encontrar o Carlos. Era uma outra mulher e ele nem sequer se apercebeu da mudança. Cumprimentou-me como se me tivesse visto todos esses dias que passaram. Desta vez sentou-se ao meu lado com a revista na mão e ambos partilhámos a risível intimidade das princesas. Depois desse dia nunca mais nos deixámos de ver.

Kaótica, 03/02/2007

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5 Comments:

Blogger Jorge P. Guedes said...

Muito interessante este abrir de janelas para a vida.
Os sonhos também nos curam!

Um abraço.
Jorge G.

5:53 da tarde  
Blogger rendadebilros said...

E quem disse que os sonhos não se podem tornar realidade?
Beijos.

6:36 da tarde  
Blogger Outsider said...

Que belo conto. Às vezes o medo de nos magoarmos impede-nos de viver, amar e sonhar. O problema é que temos que nos aperceber disto antes que seja tarde de mais.
Beijos.

4:07 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Sonho com fragmentos do real?!
si non e vero é ben trovato!

11:30 da manhã  
Blogger Unknown said...

Gostei, eu poderia usar para fazer um curta baseado nisso?

Meus parabéns

6:05 da manhã  

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