2006-12-31

Pés de Barro

Tropeçaram um no outro num encontro inesperado. Desde aí, viveram presos um ao outro. A Mulher, bela e inteligente, bebia as palavras, aceitava as opções de vestuário, dobrava-se às escolhas de vida. Dele! Colocou-o num altar e adorou-o como um deus. O Homem, arrogante e oportunista, insinuante e pomposo, pairava nesse patamar, sobre todas as coisas. Deixava-se endeusar e adorar, do alto da sua indiferença. E foi construindo um castelo de areia, ano a ano. A Mulher apreciou a adulação, ser a companheira bela e inteligente que o Homem pendurava no braço para expor nos jantares, ufano. E as muralhas do castelo subiam, subiam. Por vezes, escorregavam das ameias uns grãos de areia que a Mulher mais que o Homem corria a recolocar no lugar, numa obsessão doentia. A casa, em que ambos iriam partilhar uma vida com os filhos que a Mãe do Homem iria educar à sua imagem e semelhança, ficou, enfim, concluída… A Mulher resolveu, sozinha por uma vez, visitá-la. Levava, à volta do coração, um círculo de dor e angústia. Desandou a chave na fechadura da porta e o círculo à volta do coração apertou-se com força e deu-lhe um rebate de dor. Entrou, sempre com aquela dor inquietante a apertar-lhe o coração. Percorreu as salas, os quartos, encarou os móveis que a Mãe do Homem comprara. A dor insistiu e ela dobrou-se sobre si própria quase sem respirar. Para permitir a entrada da luz da tarde, caminhou em direcção às grandes janelas, afastou, num repelão, os cortinados que a Mãe do Homem escolhera. O ar tornou-se irrespirável. Em assomo de força, correu para a porta, abriu-a e aspirou o ar da rua. Fechou a porta atrás de si, num estrondo seco. Desceu as escadas, direita, bela, inteligente e alegre. Já na rua, apressou o passo. Virou a esquina e desapareceu.

Rendadebilros, 31/12/2006





6 Comments:

Blogger Kaotica said...

Amiga Renda

O teu conto tem uma enorme capacidade de sintetizar aquilo que muitas mulheres já sentiram dentro de uma relação amorosa e familiar. Sabes, fez-me lembrar imenso o poema do Carlos Tê (que eu adoro!), aquele que o Rui Veloso cantava no seu 1º. disco: "Saiu decidida para a rua/ com a carteira castanha/e o saia-casaco escuro/tantos anos, tantas noites/sem nunca sentir a paixão..." Pois, com a emancipação da mulher os seus desejos tornaram-se bandeiras. Mas para uma personagem abandonar assim o lar é porque já não há uma réstea de paixão, e se assim é não há mais nada a fazer! O copo fica cheio, a solidão toma conta de tudo e só a libertação pode trazer um novo sabor à vida.
Um abraço grande para ti! Que a paixão não nos falte nesse 2007 aí prestes a rebentar!

3:24 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Querida amiga
Bondade tua, como sempre a tua apreciação...
A imagem que escolheste não podia ser melhor ( ainda te queixas da falta de tempo!!! se tivesses tempo, pintarias tu um quadro, seria?)... e agradeço-te. Sobre os convites, sou mesmo desajeitada... veremos para o ano, se se abrem os meus horizontes e eu aprendo algo mais...
Não devo ter tempo de voltar por aqui hoje. Vou bailar para enganar o Ano Novo. Para ti, por esta janela que me abriste, pelo incentivo, pela mão que me deste neste final de Ano , que 2007 te traga TUDO o que mais desejas. Bem hajas.

12:17 da tarde  
Blogger Outsider said...

Um excelente conto que sintetiza o sofrimento por que muitas mulheres passaram e por vezes ainda passam.
Ainda bem que hoje em dia, isto acontece com muito menos frequência.
Um excelente 2007 com paz, saúde e alegria.
Um Abraço.

1:47 da tarde  
Blogger vareira said...

Minha querida amiga...obrigado por tudo!O teu conto...foi o meu e tu estiveste sempre presente.
Bom Ano...e regressa sempre a ver o mar!

5:41 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Querida vareira
Passo sempre a ver o mar , como sabes, desde que me deste o privilégio de me contar entre as tuas amigas do coração... já lá vão ... quantos anos , desde o nosso 1º encontro no Fórum do SPN?
Agradeço a tua passagem também por aqui...
BOM ANO!!!

4:17 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

A história não é, por certo, de ficção.

Houve, há, e espero que acabe de vez esse tipo de relação feudal.
O homem e a mulher são parceiros, companheiros, não se compram nem se vendem. Não pertencem a ninguém.

O modo como contas esta história é simples, directo e incisivo. O quanto basta para entrarmos naquele quarto.
Gostei da linguagem empregue. De acordo com o que era narrado.

Um abraço.
Jorge P.G.

7:50 da tarde  

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