2006-12-22

NO TEMPO EM QUE O MENINO JESUS PUNHA AS PRENDAS NO SAPATINHO

Era uma menina de cinco anos, magrinha, alta para a idade, esguia, de tranças bem desenhadas. Vivia numa casa caiada de branco, caixilhos das janelas e portas verde-garrafa, frente ao mar. E tinha uma irmã, mais pequenina, moreninha e linda. No Verão, no pequeno jardim, as ervilhas-de-cheiro erguiam-se em vaidosas cores suaves e um perfume singular alongava-se até à praia. Sobre o muro arredondado, pendiam trepadeiras de campânulas azuis. No Inverno, o mar batia insistentemente à porta e se, descuidado, alguém a abria, ele entrava sem cerimónias pelo corredor fora em passinhos molhados e escorria, depois, porta fora, devagarinho.
A vida corria ao sabor das marés. Enquanto não chegava a maré do Natal, as crianças entretinham-se a brincar entre as seis ondas mais baixinhas e desatavam a fugir aos gritinhos à chegada da sétima onda. Entre onda e onda, embalavam-se de imaginação e experimentavam fantasias várias, mexericavam nas gavetas das cómodas altas e nos guarda-fatos profundos. E foi numa dessas marés, aproximava-se o Natal que , na cabecinha da menina, por indícios diversos, começou a pairar uma desconfiança, primeiro, muito ténue, depois , dia a dia, mais forte: como podia um Menino, tão indefeso, tão pequeno, tão pobre deixar as palhinhas, na Noite de Natal, e andar por essas terras, cheio de frio e de medo, subir e descer chaminés, ainda por cima sem autorização dos Pais? Não, ali havia coisa. Semelhante à história da cegonha que trazia as crianças de Paris… que continuavam a cantar-lhe, mas ela já tinha percebido que a história era outra, ainda não sabia bem qual, mas sabia que, um ano e tal antes, não tinha andado por ali a rondar nenhuma cegonha e, a certa altura, entre os lençóis branquinhos, no regaço da Mãe, estava a irmã, carinha redondinha, moreninha, a criança mais bonita que já vira. De cegonhas, nem vestígios…
Ali, havia outra história. Se fosse bonita e acabasse bem como a do nascimento da irmã…que tinha chegado, como se fosse uma prenda de Natal… fora de maré…
Foi numa dessas marés, já a desconfiança tomara umas proporções gigantescas, andava ela à procura de uns trapos para se fantasiar, no fundo do profundo guarda-fatos, deu de caras com elas. A princípio, ficou interdita, entre o espanto e a dúvida, a certeza e o deslumbramento. Depois, o sangue subiu-lhe ao rosto magrinho em turbilhão, enquanto o coração pulava de alegria desmedida. Agarrou o peito com os braços e fechou as mãozitas sobre o coração, não fosse ele escapar-se de tão contente, para ir saltar na sétima onda.
Ali estavam elas, como tinha sonhado: perfiladinhas, bem areadas e brilhantes, panelas, cafeteiras, tachos, fervedores, como os da Mãe, mas em ponto pequeno, nem faltava o fogãozinho. Tinha feito uma estrondosa descoberta. Fechou rapidamente o guarda-fatos. Não voltaria a abri-lo tão cedo. Nem contaria a ninguém o seu segredo. Ia guardá-lo, enquanto pudesse, só para si, bem fechadinho a muitas chaves.
Na Manhã do Dia de Natal, como era tradição, a menina acordou, ansiosa, e foi a correr, descalça, até à chaminé. Junto ao sapatinho, um embrulho, que , aberto, sem pressas, desvendou o mistério: lindas , como as sonhara, tal e qual as que a Mãe usava sobre o fogão, mas em ponto pequeno, lindas, novas, brilhantes, as panelinhas…
A menina apertou o segredo dentro de si, numa alegria transbordante. Aquele segredo era a sua melhor prenda de Natal, um segredo que não podia espalhar tão cedo: a irmã, linda e moreninha, era ainda muito pequenina e a Mãe, à espreita, pela porta entreaberta, de olhos extasiados, tinha que continuar a acreditar no Menino Jesus.

Rendadebilros 17/5/2006

Nota: Em primeira mão, contado em http://contolivre.blogspot.com/, sítio para o qual foi propositadamente escrito.

Notinha breve: qualquer semelhança com uma qualquer realidade, passada há cinquenta anos, não é nenhuma coincidência.

4 Comments:

Blogger Jorge P. Guedes said...

É uma história em que a sensibilidade da autora vem à tona.
Vejo a introdução do elemento água, como o lavar da ingenuidade de uma criança que, por amor à irmãzita e à mãe,continua a fingir acreditar que o Menino Jesus distribui as prendas aos meninos.
Como previra, a Renda é um reforço para este espaço.

5:24 da manhã  
Blogger Outsider said...

Que belo e sentido conto, bem alusivo à época.
Um Abraço.

3:47 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Feliz Natal para todo. O Menino continua a deixar prendas nos sapatinhos, sempre, enquanto quisermos acreditar.

9:55 da tarde  
Blogger vareira said...

Delicioso!

11:14 da tarde  

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