2007-02-12

Amores dos tempos modernos

Imagem retirada daqui
A Joana conversava com a avó. Sentadas num banco de jardim na varanda-miradouro sobre o vale que se estendia a seus pés, discorriam sobre os sobressaltos do coração provocados pelo encontro que estava para ser. A avó aconselhava-lhe prudência. A inteligência e o romantismo dos poemas eram muito importantes, mas a presença física, a empatia entre corpos não era menos extraordinária que a convergência de pensar e as palavras belas em verso. Dar apenas relevo à inteligência era admirável, mas ela já tivera dezassete anos e sabia que uma figura bem apessoada, uns olhos atraentes e um sorriso podiam ter um papel determinante numa relação. Aquilo tinha começado há meses atrás. Joana entrara numa sala de conversação na Internet, numa tarde chuvosa e particularmente aborrecida, para passar tempo e encontrou-se no meio de uma algaraviada de conversas, de que já estava pronta a desistir por desinteressantes, quando o António entrou na sala e quase imediatamente gerou-se uma corrente entre os dois que os levou a afastar-se para um cantinho privado. Desde então, sem marcarem dia nem hora, iam aparecendo regularmente para cavaquearem e, ao fim de pouco tempo, aqueles encontros tornaram-se um hábito diário com dia e hora certas. A avó bem tentava convencê-la que agora tudo acontecia muito depressa, mas nada era diferente de antigamente, embora com outros meios à disposição. Antes, também se escreviam cartas a desconhecidos, por intermédio de amigos de amigos de amigos, de revistas e jornais. Por vezes, ontem como hoje, alguns desses escritos tornavam-se pretextos de entretimento para a alma, outras vezes, ensejos de amizades futuras ou até, em mais raras ocasiões, em casamentos, muitas outras vezes, iam esmorecendo, escasseando as palavras, espaçando o tempo e esqueciam-se em nada.
A Joana teimava. As trocas de palavras tinham tomado um lugar de relevo na sua vida. Da sala de conversação em privado, tinham passado a falar apenas só eles num sítio de mensagens. Entretanto, trocaram os endereços electrónicos e as mensagens choviam com uma persistência pouco habitual. Passados meses, foi o momento do intercâmbio dos números de telemóvel. Todos lá em casa assistiam ao florescer desse amor que, prognosticavam, estava condenado a murchar, mal se encontrassem, mas respeitavam aquele suspirar ausente, as faces afogueadas, as mudanças de humor entre a tranquilidade e as incertezas, a chegada dos telefonemas e do correio electrónico e as esperas. A avó falava longamente com a neta. Também ela tivera, como tantas amigas, um correspondente. Adorava as cartas lidas sofregamente às escondidas, que a sua mãe não tinha a compreensão das mães de agora. Acreditava que os poemas que ele tão bem urdia eram únicos e que ninguém mais no mundo escrevia daquela maneira e só para ela, o que até podia ter sido a verdade mais verdadeira que vivera. Também haviam trocado os números de telefone e a avó vivera a mesma mistura de ansiedade e contentamento que via alvoroçar a neta, ao ouvir a voz de uma imagem que não conhecia. A Joana fizera questão nesse ponto. Não queria conhecer antecipadamente o rosto por trás das palavras escritas e da voz. E era nesse mesmo ponto que a sabedoria da avó a obrigava a reflectir. Mas a Joana ria, com a convicção dos jovens apaixonados e aquele riso devolvido em eco das profundezas do vale, caía em bênção sobre as duas, sentadas no banco verde na varanda alcantilada sobre o vale. A avó recordava-lhe que ela tinha saído para um encontro semelhante ao que ela ia ter no dia seguinte, toda cheia de ilusões, quase sem poder respirar de tanta aflição. Na Praça da Batalha. Quando ela descera do autocarro, ele dirigira-se-lhe como se a conhecesse de toda a vida, com um enorme ramo de rosas vermelhas envolvido num sorriso maravilhoso. A avó confessa que não sabe o que se passou, mas um gesto imprudente da mão à volta do pescoço quebrou-lhe o colarzinho de pérolas brancas que se escaparam pelo empedrado da rua e eles a correr atrás delas, sem conseguir juntar senão uma dúzia delas. O passeio correu muito calmo, no entanto, algo mais se tinha quebrado além do colar e a avó começou a demorar a responder às cartas e já não lhe apetecia atender os telefonemas. Ele, inteligente, como sempre demonstrara ser, compreendeu a mensagem e deixou de lhe escrever. A avó, sorrindo, ainda contou à neta que mantivera ainda com a irmã dele uma correspondência regular até já depois de estar casada com o avô. E nada mais. A Joana não queria saber, agora os tempos eram outros e a mentalidade das pessoas evoluíra. Só lhe pedia que, no dia seguinte, a levasse, de carro, ao Bar do Alex, à Praia de Valadares e logo se via… A avó prometeu e cumpriu. Enquanto seguia a neta com o olhar, vieram-lhe à lembrança as últimas notícias do seu antigo correspondente, notícias de há muito, muito tempo… a irmã, a Teresa, escrevera: ele casara, tinha um filho, era feliz, e pensava nela com muito carinho…
A avó acordou do passado e pôs a carro a andar pela marginal junto às praias. Virou à direita e seguiu para Miramar. No fundo azul clarinho do céu, acima do mar, desenhava-se a Capelinha do Senhor da Pedra e, na direcção do sol, caminhava um parzinho de mãos dadas.

Renda de Bilros, 12/02/2007

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3 Comments:

Blogger Outsider said...

Que bonito conto! O amor pode mesmo florescer e existir sem o conhecimento pessoal. A nível da amizade, sei que isso acontece pois isso já se passou comigo, quando conheci um certo círculo de amigos que nunca se tinham visto pessoalmente, mas que passaram um dia muito agradável juntos e onde se provou que a amizade virtual que já existia, se consolidou com o conhecimento pessoal.
Quanto ao sítio onde se passa o conto, só não sei onde é o vale, pois a praça da Batalha, a esplanada do Alex e a capela do Senhor da Pedra, conheço eu bem pois nasci no Porto e vivo em V. N. Gaia. Também moras aqui, ou os sítios foram escolhido por gostares deles?
Beijos.

4:09 da tarde  
Blogger rendadebilros said...

Outsider
Os sítios foram escolhidos por gostar deles e alguma família viver lá por perto...e por ter boas recordações da praia... o Alex é meu primo ( em segundo grau, quer dizer, a mãe dele e o meu pai são primos direitos) ... este país é mesmo "estreitinho"...quer dizer, cruzamo-nos todos por aí...
Beijos.

5:00 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

encontrei mesmo agora o teu blog, e li apenas 2 contos...parabens!!! os teus contos nao terminam...o que me chateia um pc...mas felicito-te por isso!!! da-nos vontade de continuar.
quanto a este conto, eu passei por uma experiencia nao mt alegre, mas o que escreves e como escreves é bastante bem escrito e inspirador.
Parabens!!

7:42 da tarde  

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