2007-08-29

Férias demasiado reais para serem férias

Álvaro Cunhal, Desenhos da Prisão

-- Então amiga, isso é que foi estar de férias!
-- Sim, desta vez estive mesmo mais de um mês fora daqui. Sabes bem como eu estava a precisar de mudar de ares.
-- Faço ideia… Isso é que foi folgar! Há gente com sorte!
-- Mas olha que escusas de invejar as minhas férias porque estou certa de que para ti não serviam.
-- Oh, lá estás tu com essas choraminguices. Aposto que me vais dizer que te fartaste de trabalhar…
-- Eu para ti nunca me farto de trabalhar pois sabes bem que estou desempregada e tu só vês trabalho à frente.
-- Isso é porque não te esforças a procurar trabalho, vens sempre com esse paleio de que mais vale desempregada do que mal empregada. Eu tive que penar se quis ter este emprego…
-- Pois, eu sei. Mas chegas a casa e se quiseres não fazes jantar, comes um prato de cereais e estendes a perna, vais de férias e não fazes nenhum. Uma mãe de família nunca tem realmente férias…
-- Já sabia que ias dizer isso! Vens sempre com essa conversa de dondoca…
-- Pois então vou contar-te como foram as minhas férias para tu te ficares para aí a roer de inveja.
-- Sim, querida…

Não tinha horas para nada, aliás, não tinha relógio. A manhã era toda para dormir, como se fosse possível recuperar todos os sonos perdidos. Tomava-se o pequeno-almoço à hora a que as pessoas normais almoçam. Mas, como o que mais se fazia era comer e dormir, não consegui evitar as idas ao supermercado. Isso era o que mais me custava! Porque não há-de o nosso estômago entrar também de férias e fazer jejum? Qual o quê, o ar do campo só faz é abrir o apetite, então às crianças… no primeiro dia nota-se logo. As férias são cada vez mais como o Natal – as férias são para elas! Bem, passado o tormento de ter que ir regularmente abastecer-me de víveres, havia toda uma rotina que jamais me abandonou: fazer as refeições todas, as sandes para a praia, a sopa para a noite; manter a casa mais ou menos limpa, apesar de toda a areia trazida da praia; lavar e estender sempre muita roupa e a difícil tarefa de fazer andar tudo num virote, que é o papel ingrato que cabe a todas as mães.
A ida para a praia era sempre depois das cinco horas e nunca aos fins de semana. O regresso ao pôr do sol e sempre a angústia de passar demasiado tempo enfiada em casa apesar da varanda, da piscina insuflável e da cama de rede cá fora. Felizmente houve quem as gozasse!
Sabes, a minha gata Bué teve outra ninhada (essa é outra que não tem férias, coitada). Desta vez bateu o seu próprio record e teve cinco lindos gatinhos amarelos, outra vez filhos do mesmo pai (sacana de gato!). Quando não está a parir está a amamentar, quando não está a amamentar está a fazer mais filhos: três ninhadas num ano, sem dar tempo a laquear as trompas. A bicha é mesmo produtiva, parece que emprenha só com o cheiro…
Mesmo em férias chegava à noite estafada. Quantos filmes comecei a ver e adormeci… será que vi algum inteiro? Às vezes adormecia a ver um e acordava para ver o resto de outro. Cheguei a dar umas espreitadelas pelos blogues mas depois desistia. Sabia das notícias, lia o jornal, ia sabendo das coisas mas não me sentia nem um pouco motivada para escrever sobre nada. E sabes que ainda não me apetece? Tenho andado com vontade de ler mas de uma forma tão dispersa que dei por mim a ler cinco livros ao mesmo tempo sem terminar nenhum. Também não me forcei!
Dei umas voltas pelo Alentejo, poucas mas boas. Até fui ao fluviário de Mora onde não nos fizeram desconto por não nos considerarem... uma família!
E olha que ainda assim sendo tudo tão normal me custou a voltar à normalidade. A minha vontade era ficar por lá… ficar para sempre no Alentejo a fazer-me campónia e a distanciar-me das misérias e das vaidades da capital.
Kaótica , 28/08/2007

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2007-06-05

Rei azteca (a.T.- antes da era telemóvel)

Sad Young Man on a Train, Marcel Duchamp


Grenoble ardia sob uma canícula insuportável. Ao longe, os Alpes paradoxalmente cobertos de neve. Nacionalidades várias, grupos diversos. A viajar e a falar francês. Ela, de nacionalidade grega. Ou talvez, portuguesa. Falavam de um país de sol, e todos pensavam na Grécia, só depois, em Portugal. Ele, mexicano. Encontraram-se pela primeira vez no autocarro, rumo a Besançon. Sentaram-se ao lado um do outro e discursaram sobre a paisagem, hesitando entre o espanhol e o francês. Passearam, embevecidos, pelas ruas antiquíssimas, sem ouvir explicação nenhuma da visita guiada. No meio dos colegas todos, isolaram-se do mundo inteiro. Ela começou a chamar-lhe o seu rei azteca, ele sorria, moreno, alto e olhos negros, palavras cor de chocolate. No regresso, poucas palavras. Deixavam falar o olhar que, de quando em quando, se desviava para fora, para as montanhas. Antes de se separarem, sentaram-se no banco de um jardim, mudos e quedos, tocavam-se os olhos, no silêncio do calor impossível.

Outro dia, à passagem por Lyon e a percorrer as Galerias La Fayette, ele não apareceu. Chegou, ansioso, no fim de semana posterior, na viagem para o Vercors. Palavras ditas sem nexo, numa torrente sem parar, num pânico de falta de tempo para dizer tanto em tão poucas horas. No Museu da Resistência, ele amparou-a, ao vê-la perturbada, perante os testemunhos reais de uma História palpável que apenas soubera em livros e em documentários. E, no domingo, para se dessedentarem, acamparam na esplanada da Place Grenette, pediram uma menthe à l’eau e por ali ficaram com os amigos a (des)conversar de coisa nenhuma, num torpor de que acordaram ao final da tarde, descia a noite sobre a Cidade Olímpica. O seu rei azteca iluminava as sombras quentes e as suas mãos procuraram as dela para combinarem encontrar-se na Estação, no momento da partida para os respectivos países. Entre abraços e beijos de uns e outros, espanhóis, jugoslavos, gregos, belgas, italianos, finlandeses, talvez uma portuguesa ou uma grega, a euforia da volta a casa misturava-se num travo agridoce: a emoção daquele Verão numa torre de Babel moderna não ia repetir-se nunca mais…

Estação, chegadas e partidas, avisos, malas, confusão, vozes, gritos, risadas, segredos, mãos entre as mãos. Hora da partida a avançar em fúria enlouquecida… O seu rei azteca que não chegava. Ela, entontecida, tanto reboliço, tantas línguas, tanta loucura, tanto ruído… E ele que não vinha… Anunciavam a hora da partida do comboio que o devia levar … e ele que não … Lá vinha ele, alto, moreno, o seu rei azteca… Teve apenas tempo de abraçar os amigos, rapidamente. Junto dela, num momento, prendeu-lhe as mãos e beijou-a, breve , brevemente, com sabor a chocolate, num amor fugidio do pino do Verão. E correu… O comboio deslizou devagar, depressa, muito depressa e ele, a rir, a acenar escandalosamente da janela, longe, cada vez mais longe…

E, de repente, petrificada, no meio da gare de Grenoble, num sobressalto de pavor e impotência, abafou um grito: não sabia nada dele, nem uma direcção, nem um número de telefone, nem o seu nome, apenas era o seu rei azteca… e esse partia naquele comboio, a acenar-lhe, lá ao longe, cada vez mais longe, para sempre…

Renda de Bilros, 04/06/2007

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2007-06-04

(A)casos

Imagem tirada daqui

Etelvina ia pela rua a cantarolar dentro da sua cabeça . A Etelvina que eu conheço não tem nada , mesmo nadinha a ver com a do Sérgio Godinho, aquela que, “com seis meses já se tinha de pé…” , embora ela até saiba a letra de cor. Então, ia ela com uma canção a repetir-se dentro da cabeça e, por acaso até nem era aquela atrás referida… Seguia descontraída e despreocupada e olhava num relance para as montras das lojas sem lhes prestar grande atenção. No entanto, chegou à porta da florista e abrandou o passo. Inclinou a cabeça e admirou através do vidro da enorme janela as flores expostas, as cores, os feitios … e , nisto, alguém de dentro da loja , numa alegria transbordante acenava-lhe risos e sinais de mãos… os olhos brilharam-lhe da surpresa, entrou e beijou a amiga numa efusão de saudades e de gargalhadas. Arrastaram-se uma à outra para um café próximo a atropelar as palavras, as vidas vividas, enquanto separadas, entremeadas sempre de espantos e risadas e abraços. Estiveram nisto metade da tarde: a trocar risos e detalhes da vida. A certa altura, começaram a cruzar os dados do percurso de vida de cada uma e chegaram à conclusão de que nunca n(est)a vida tinha havido a mínima probabilidade de se terem encontrado antes. Separaram-se ainda alegres , mas cheias de interrogações. Nunca mais se voltaram a encontrar depois deste episódio.

A Etelvina jura ainda hoje, anos volvidos, que ambas tinham a certeza absoluta de que se conheciam…

Rendadebilros, 01/06/2007

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2007-06-01

Quem Tem Medo de Lagarta Verde?

O menino e a menina tinham estado em casa tempo demais porque lá fora tinha chovido sem parar. Foi então que apareceu o arco-íris e a chuva quase parou de cair. Já não era quase chuva, só umas pingas do céu. O arco-íris veio para ficar e deu tempo a sair à rua para poderem vê-lo. O menino depressa se cansou de olhar para o céu e viu uma enorme lagarta verde. Rápido, com o seu poder de mexer em lagartas ergueu-a no ar dizendo olha, toma! A menina olhou e gritou (ou será que gritou e olhou?); o que importa é que ficou o grito a dar três voltas no espaço e os cabelos da menina em pé, pelo susto. A menina tinha uma saia aos corações e falava de amor, mas não gostava de lagartas verdes - e das grandes - perto de si. O menino largou o bicho que caiu mole e ficou no seu enrola- desenrola, até cansar. A menina perguntou e agora com’é qu’ eu passo? Mas o menino fez que nem ouviu, tal como ela às vezes também lhe fazia. Seguiu ligeiro para a frente à procura de mais coisas para pegar e largar. A menina deu um salto enorme por cima da lagarta que agora no chão já nem parecia tão grande como isso. Entretanto vinha o sol a aparecer e reflectia-se nas poças de água que a chuva tinha feito. Pensou: as nuvens caíram em chuva e ficaram poças. A lagarta prosseguiu o seu caminho sempre verde. Mas que mal lhe tinha corrido o dia hoje... que grande susto lhe pregara o miúdo. Tinha a sorte de não ter ouvidos para os gritos da menina. Senão, podia até morrer do coração.

Kaótica, s.d.

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2007-05-03

Memórias do país da má memória


O país era pequeno mas vivia remediado. Não havia nem fome nem fartura. Ou pelo menos havia uma fome relativa como a dos que pescavam e só comiam peixe com pão, porque só tinham dinheiro para comprar pão; ou os que cultivavam os campos só comiam sopas de pão com azeite ou legumes, ou batatas, consoante fosse a época de maior fartura de uma ou outra coisa. Carne era só em dia de festa, quando se matava o porco e se salgavam as carnes que depois eram racionadas ao longo do ano. Fome havia-a às vezes, quando o tempo não ajudava à saída dos barcos para o mar, ou quando estragava as colheitas… Frio também havia, porque o dinheiro era pouco para sapatos e abafos. Mas depois vinha a Primavera, o sol e o Verão e voltava a haver fruta para dar e vender e ânimo para viver, apesar do suor do trabalho de sol a sol.
Falava-se à boca fechada na Velha. A Velha mandava em tudo no país. Fosse ou não fosse digna de respeito, o certo é que se fazia respeitar pois todos tinham medo dela. Contava-se que quem era contra ela ia parar à prisão e às vezes desaparecia sem deixar rasto. Havia certas palavras que não se podiam dizer, nem mesmo na casa de Deus, ou melhor, muito menos na casa Dele. Uma vez um padre novo lá na terra tinha falado na paz e na igualdade dos homens e na missa seguinte tinham lá aparecido uns homens de óculos escuros que nunca ninguém houvera visto na aldeia. O padre desapareceu e veio outro mais velho que assustava velhos e crianças com os seus sermões. Dizia que o outro padre era um chibo vermelho que tinha ido parar ao Inferno. Havia pessoas que faziam as suas trouxas e ia para longe refazer as suas vidas. Passado tempos voltavam estranhos e ricos, traziam filhos que falavam estrangeiro e construíam casas enormes para que todos reparassem nelas. Um dia até chegou um que vinha num carro enorme e que se entretinha a levar as crianças da aldeia a passear com ele para lhes mostrar como falava por um microfone com a sua mulher que estava em casa: “Alô Maria! Alô, um, dois, três, raporta para aqui!” No final das férias regressavam para esses outros países longínquos deixando o povinho com um misto de inveja e de saudade.
Era assim a vida mas de repente tudo mudou. Dizem que não há fome que não dê em fartura. Não sei se se pode falar de fartura, sei que de repente os supermercados chegaram à aldeia e as pessoas começaram a precisar de coisas que antes não tinham. Paravam indecisas em frente às prateleiras cheias de produtos sem saber qual escolher. Certas pessoas que faziam dos produtos da terra o seu viver começaram a produzir menos e a aparecer com carros cada vez melhores. Dizia-se que eram os subsídios que vinham de fora. Havia até quem deitasse fora toda a produção por não estar normalizada. Diziam que não podiam vender a sua fruta àquele preço, que dava prejuízo porque os outros a conseguiam vender mais barata. Começaram a ganhar mais para produzir menos. Isto para muitos era incompreensível mas depois chegávamos ao supermercado e víamos a fruta que vinha de fora, mais barata que a nossa e as pessoas compravam-na, é claro. Queixavam-se que não tinha o mesmo sabor, que era bonita por fora mas sensaborona por dentro, mas depressa se habituaram a ela. As pessoas começaram a comer com os olhos, a cobiçar tudo o que viam nas prateleiras, no vizinho do lado, na revista dos colunáveis. A sua vida pacata deixou de fazer sentido. De repente abriram os olhos para o mundo e perceberam que as suas vidas tinham ali estado paradas no tempo. Havia que recuperar o tempo perdido e ter o que os outros tinham. Sempre que conseguiam obter uma coisa já queriam ter outra e outra e outra. Abriram um banco na aldeia. As pessoas ao princípio tinham medo de entregar as suas parcas economias ao banco mas depois deixaram de ter economias e começaram a ter mais dinheiro que parecia sempre pouco para comparem tudo o que queriam. Um dia chegou a notícia triste de um homem rico da aldeia que se tinha enforcado numa figueira porque não podia já pagar as suas dívidas e nesse dia o sino soou mais a falso do que nunca porque naquele mesmo dia tinha sido substituído por um sino electrónico que atroava os ares da aldeia em cada passagem das horas.

Kaótica, 02/05/2007

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2007-04-25

25 de Abril de 1974

Acabei de ver um programa de homenagem ao Zeca Afonso na TV feito na Galiza, e fiquei com vontade de escrever. Não sei bem o quê. Mas a vontade é grande. É daquelas coisas que crescem cá dentro e que a partir de um certo tamanho precisam de sair. De alguma maneira. Então vieram-me à lembrança algumas memórias de 25 de Abril de 1974, um dia claro, bonito, com uma das mais belas alvoradas de sempre. A maior parte das pessoas preparavam-se para mais um dia tristonho, cinzento e escondido. Muitas pessoas esperavam, em celas de prisões, por liberdade. Muitas pessoas esperavam que os seus filhos não morressem em África. Muitas pessoas preparavam-se para mais um dia em que falariam às escondidas de outras pessoas. Muitas pessoas faziam contas às suas vidas e preparavam-se para sair de Portugal, também às escondidas, à procura de uma vida melhor ou para evitar que os seus filhos fossem para a guerra. Havia ainda alguém que imaginava o dia em que poderia sair à rua e gritar. Gritar tudo, muito, sem contenção, tudo o que lhe ia na alma. E que era bastante. Nessa manhã, porém, a luz do sol era diferente. Mais brilhante, mais clara e mais nítida, e com um poder mágico de fazer sorrir as mulheres e os homens, os velhos e os novos, os gordos e os magros, os altos e os baixos, os feios e os bonitos, os brancos, os pretos, os azuis, os amarelos, os verdes, os vermelhos e até os roxos. Então toda a gente veio para a rua. Era ver para crer. Para crer que era desta. Era desta que ia acabar a noite longa, os dias sem luz. Era desta que Portugal ia começar a ser justo, amigo do próximo, instruído, culto, saudável, crescido, desenvolvido, livre. Já os soldados estavam na rua. Desde bem cedo, ainda madrugada, os soldados saíram dos quartéis e dirigiram-se para os locais onde as sanguessugas moravam, essas sanguessugas que se alimentavam do povo e o enfraqueciam. Que faziam do povo, um povo triste, sem garra, sem sonhos. Para depois melhor poderem pisar, humilhar, prender ou matar, sempre que fosse necessário. O povo apercebeu-se imediatamente e juntou-se ainda mais nas ruas, agora ao lado dos soldados. Era preciso ajuda? o povo está aqui, ao vosso lado, para o que der e vier. Vamos aproveitar, não haverá outra oportunidade. Os soldados agradeceram. Agradeceram a força do povo, que era muita, era tanta força que era desconhecida por muitos até então. Os soldados agradeceram as sandes, a água, o vinho, as sopas, os sorrisos, as palavras de incentivo. Mas sobretudo a alegria. A alegria imensa que rejuvenesce, que não mente porque é franca, que nos enche o espírito de ideias e projectos e que nos dá o dom da compreensão quando olhamos para o outro e nos vemos a nós próprios. De repente, alguém trouxe cravos. Vermelhos. E as pessoas agarraram nos cravos e puseram-nos nas pontas das espingardas.

José Leitão, 25 de Abril de 2007

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2007-04-21

A melga e o anarca



Era uma vez uma aldeia muito pobre, situada entre um próspero reino e uma grande fábrica de cimento cujo nome era Allgarve.

Todos viviam razoavelmente infelizes, governados por um idiota a quem chamavam nomes sempre que podiam.
Para mitigar as tristezas, os habitantes da aldeia costumavam encontrar-se junto do sino e de lá partiam à aventura, blogosfera fora, contando uns aos outros histórias disto e daquilo, muitas mais disto.

Um belo dia, estava um anarca a anarquizar uma mensagem quando, pela janela, sorrateira, pata ante pata, uma melga enorme de pernas esguias e corpo escuro, bronzeado do sol, lhe poisou na bochecha esquerda.
O anarca sentiu uma picadinha…logo seguida de outra, e parou de anarquizar.
Já só avistou a melga de relance. Esta, como havia chegado, assim se esfumara, confundindo-se com o tom amarelecido das paredes do quarto do anarca. Ria baixinho, marota, esperando muito agachada que a baba crescesse na bochecha da vítima que escolhera nessa noite.

O tempo correu, a melga não se mexeu e o anarca começou a sentir um calorzinho gostoso a percorrer-lhe o corpo. Em vez de comichão, a baba produzia-lhe uma agradável sensação que nunca antes experimentara. E era mesmo bonita, transparente e cintilante ao mesmo tempo, como uma bolinha de sabão.

E a partir dessa noite, a melga passou a visitar o anarca e a picá-lo, a picá-lo, e a ouvir a sua voz forte tornar-se meiga sussurrando-lhe:
- Ai…pica…pica…minha melguinha…pica mais!...ai…ui…

Assim seguiram durante o verão, até que um dia, cansados daquelas picadelas no silêncio do quarto e às escondidas, resolveram passar a encontrar-se junto do sino da aldeia.
Os dois, agarrando-se às cordas do sino, faziam o badalo bater e o sino tocar, tocar… e o sineiro dizer:
- Hum! Aqui há namorico pegado…um destes dias vou tocar a casório…

Estava certo o velho sineiro da aldeia. Na primavera seguinte, com o rebentar das primeiras flores, a melga delgada e o anarca, homem cujo único vício era muito fumar, acabaram por casar.
E foram muito felizes junto das suas 12 bolinhas de sabão, umas mais delgadinhas e transparentes e outras mais escuras e amarelecidas, parecidas com bolas de fumo.

FIM


- Um anarconto original de: JPG - o sineiro (www.osinodaaldeia.blogspot.com)