2007-05-03

Memórias do país da má memória


O país era pequeno mas vivia remediado. Não havia nem fome nem fartura. Ou pelo menos havia uma fome relativa como a dos que pescavam e só comiam peixe com pão, porque só tinham dinheiro para comprar pão; ou os que cultivavam os campos só comiam sopas de pão com azeite ou legumes, ou batatas, consoante fosse a época de maior fartura de uma ou outra coisa. Carne era só em dia de festa, quando se matava o porco e se salgavam as carnes que depois eram racionadas ao longo do ano. Fome havia-a às vezes, quando o tempo não ajudava à saída dos barcos para o mar, ou quando estragava as colheitas… Frio também havia, porque o dinheiro era pouco para sapatos e abafos. Mas depois vinha a Primavera, o sol e o Verão e voltava a haver fruta para dar e vender e ânimo para viver, apesar do suor do trabalho de sol a sol.
Falava-se à boca fechada na Velha. A Velha mandava em tudo no país. Fosse ou não fosse digna de respeito, o certo é que se fazia respeitar pois todos tinham medo dela. Contava-se que quem era contra ela ia parar à prisão e às vezes desaparecia sem deixar rasto. Havia certas palavras que não se podiam dizer, nem mesmo na casa de Deus, ou melhor, muito menos na casa Dele. Uma vez um padre novo lá na terra tinha falado na paz e na igualdade dos homens e na missa seguinte tinham lá aparecido uns homens de óculos escuros que nunca ninguém houvera visto na aldeia. O padre desapareceu e veio outro mais velho que assustava velhos e crianças com os seus sermões. Dizia que o outro padre era um chibo vermelho que tinha ido parar ao Inferno. Havia pessoas que faziam as suas trouxas e ia para longe refazer as suas vidas. Passado tempos voltavam estranhos e ricos, traziam filhos que falavam estrangeiro e construíam casas enormes para que todos reparassem nelas. Um dia até chegou um que vinha num carro enorme e que se entretinha a levar as crianças da aldeia a passear com ele para lhes mostrar como falava por um microfone com a sua mulher que estava em casa: “Alô Maria! Alô, um, dois, três, raporta para aqui!” No final das férias regressavam para esses outros países longínquos deixando o povinho com um misto de inveja e de saudade.
Era assim a vida mas de repente tudo mudou. Dizem que não há fome que não dê em fartura. Não sei se se pode falar de fartura, sei que de repente os supermercados chegaram à aldeia e as pessoas começaram a precisar de coisas que antes não tinham. Paravam indecisas em frente às prateleiras cheias de produtos sem saber qual escolher. Certas pessoas que faziam dos produtos da terra o seu viver começaram a produzir menos e a aparecer com carros cada vez melhores. Dizia-se que eram os subsídios que vinham de fora. Havia até quem deitasse fora toda a produção por não estar normalizada. Diziam que não podiam vender a sua fruta àquele preço, que dava prejuízo porque os outros a conseguiam vender mais barata. Começaram a ganhar mais para produzir menos. Isto para muitos era incompreensível mas depois chegávamos ao supermercado e víamos a fruta que vinha de fora, mais barata que a nossa e as pessoas compravam-na, é claro. Queixavam-se que não tinha o mesmo sabor, que era bonita por fora mas sensaborona por dentro, mas depressa se habituaram a ela. As pessoas começaram a comer com os olhos, a cobiçar tudo o que viam nas prateleiras, no vizinho do lado, na revista dos colunáveis. A sua vida pacata deixou de fazer sentido. De repente abriram os olhos para o mundo e perceberam que as suas vidas tinham ali estado paradas no tempo. Havia que recuperar o tempo perdido e ter o que os outros tinham. Sempre que conseguiam obter uma coisa já queriam ter outra e outra e outra. Abriram um banco na aldeia. As pessoas ao princípio tinham medo de entregar as suas parcas economias ao banco mas depois deixaram de ter economias e começaram a ter mais dinheiro que parecia sempre pouco para comparem tudo o que queriam. Um dia chegou a notícia triste de um homem rico da aldeia que se tinha enforcado numa figueira porque não podia já pagar as suas dívidas e nesse dia o sino soou mais a falso do que nunca porque naquele mesmo dia tinha sido substituído por um sino electrónico que atroava os ares da aldeia em cada passagem das horas.

Kaótica, 02/05/2007

Etiquetas: