2007-02-17

História de Carnaval Demasiado Real para Ser de Carnaval


Aqui vos procuro provar que Oswald de Andrade, o escritor modernista brasileiro, estava certo quando dizia “não vi e não gostei”. Foi isso mesmo que se passou comigo hoje, e olhem que já não é a primeira vez que me acontece. Era chegada a dura manhã do desfile de Carnaval das escolas do Concelho de Oeiras. O céu estava pouco brasileiro, bastante carregado e cada vez mais se foi enchendo de chumbo. Levei o meu filho à escola, mascarado como é costume, mas pelo caminho já duvidava da saída à rua daquele desfile. Se já toda a gente sabe, porque tem acontecido as mais das vezes, que nesta altura do ano chove, que o Carnaval cá não pode sair para a rua de bunda de fora como no país tropical, porque insistimos em levar as nossas crianças aos bandos pelas ruas enlameadas? Haverá coisa pior que uma veste de princesa com a rabona a arrastar nas poças? E as carinhas deles arrepiadas pelo vento agreste tentando segurar os chapéus, com o balãozinho do pensamento a dizer “tirem-me daqui!”…

Bem, desta vez, como de outras, o meu pessimismo era mais uma forma de realismo esclarecido. Mas o que eu não podia imaginar era o desfecho daquilo tudo. Voltei para casa no limite do começo da carga de água. Agora sim o céu ia desabar, como depois desabou. O nosso São Pedro não é muito carnavaleiro. Dizem que caiu granizo mas eu não vi. Em casa ouvi e vi muita chuva cair, exactamente à hora do começo do desfile. Nem mais pensei em sair para a rua. Pensei, coitadinhos vão ficar fechados lá nas salas de aula. Mas afinal mais tarde vim a saber que acabaram por sair da escola. Foram para um pavilhão onde assistiram a uma animação teatral para crianças. E então, gostaram? Foi aí que começou a prova da minha certeza de que não vi e não gostei. Era outra vez aquele teatro das nanhas.

O teatro das nhanhas…

O que pensariam vocês se chegassem a um palco instalado ao ar livre, num dia de pouca chuva, com muitas crianças expectantes de ainda virem a ter um momento feliz em todo aquele carnaval, e vissem um espectáculo com umas monas mal aparelhadas que diziam as coisas mais parvas que se possa imaginar? Coisas daquelas a que nem mesmo uma criança acha graça, porque são tão imbecis que não têm mesmo qualquer graça. De todas essas coisas, e de outras visuais também muito más, ficou-me para o resto da vida esta pergunta que as monas treslocadas faziam às crianças do público: “Vocês sabem o que são nhanhas? Isto são nhanhas! – e pegavam em todo o tipo de parvoíce que lhes vinha à mão e atiravam-nas ao ar, repetindo a pergunta, e tornavam a repetir e repetiam, repetiam, repetiam... Isto, assim contado até parece menos mau comparado com o que de facto foi. Esta é daquelas coisas que contadas não conseguem dar a mais pequena ideia de todo o piroso e reles despropósito de toda a cena, da pergunta, da resposta que inadvertidamente logo vinha à mente dos conhecedores do mais vernáculo calão. Estava comigo naquele dia um amigo tão incrédulo quanto eu. Eles disseram "nhanhas"?

Pois este ano, como no ano passado teve o sucesso que teve, mesmo entre a criançada, a Junta de Freguesia de Algés resolveu repetir a dose. Isto é falta de bom senso? Questão de mau gosto? Ou aquela companhia ainda paga à Junta para actuar, tornando-se assim o Desfile num evento lucrativo? Não sei dar resposta a nenhuma destas questões, na verdade o caso é tão absurdo que não pode ter qualquer explicação que me ocorra. Sei que hoje voltou a haver crianças do 1º. Ciclo que, confrontadas com a paródia, gritaram “estúpidos” do meio do público. Como as vão convencer um dia que o teatro não é aquela pornochachada? Como as vão convencer para o ano a ir outra vez para a escola no dia do desfile? Como lhes dizer que afinal o Carnaval era para ser uma coisa boa, uma festa pagã, uma libertação, uma explosão de bom humor e criatividade para aquecer o final do Inverno? Pode ser que pelo menos esses que gritaram ou pensaram que aquilo era uma ofensa à sua inteligência de tão estúpido que era, pelo menos essas, as que se riram e gozaram com todo aquele espectáculo de mediocridade, venham a ser pessoas adultas diferentes dessas outras pessoas adultas que lhes ofereceram hoje, e pela segunda vez, a elas, aos pais, aos professores, à comunidade, este espectáculo de provincianismo pacóvio e de mau gosto escabroso.

O que são nhanhas? Isto são nhanhas!

Kaótica, 16/02/2007

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2007-02-15

História de amor demasiado real para ser real

Acordei com o pé inchado, uma infecção espalhando-se pelo peito do pé, uma comichão danada, tudo quente, esponjoso e dormente. Foi este o acordar que eu dei ao meu amor no Dia dos Namorados, querem maior resistência à celebração do consumismo que este dia traz? Mas acreditem, nada melhor para pôr à prova um amor consolidado com amizade. E também para pôr à prova o nosso sistema nacional de saúde pública.
Fomos juntos para o Centro Médico de Algés, aquele tal famoso que o Isaltino prometeu para todos nós construir de novo. Estava lá um cheiro nauseabundo a casas de banho velhas e edifícios apodrecidos. Uma fila de gente cansada de estar em pé formava-se por dois guichés. O pé doía ainda mais finda a caminhada até lá. Chegou a minha vez e pedi uma consulta de urgência, contei do meu pé. A funcionária perguntou quem era a minha médica de família. Disse que essa médica já não atribuía mais consultas de recurso. Falou que as consultas de urgência eram só até às 9:00 h. Aí a minha cabeça disparou rápido pelo absurdo. Urgências só até às 9:00h? Mas as urgências não escolhem horas para acontecer. Insisti. A funcionária mandou-me ir ver na enfermagem. Lá viram-me o pé e acharam que aquilo era coisa para ser vista por um médico. Ligaram para a doutora, mas ela insistiu em não me ver. Esta doutora, tem dias, como se costuma dizer. Parece duas. Há dias em que é simpática e atenciosa. Há outros em que o monstro sai à rua para nem me querer ver.
A custo lá me dirigi para o guiché outra vez. Ninguém encontrou solução. A enfermeira chegou lá a refilar com as funcionárias que não podiam continuar a lhes passar a batata quente de falar com os médicos. Isso nem uma enfermeira tem que aguentar. Lá fora dizia pelo corredor para quem quisesse ouvir que os médicos chegavam tarde para as consultas e depois era isto, não queriam atender as urgências. Eu sabia que aquilo era uma urgência real bloqueada por falsas situações de urgência, meras consultas de recurso a outras marcadas para mais tarde. E não havia ali ninguém provido de bom senso, tirando as enfermeiras. Pedi o livro amarelo, o que fala na capa de cidadania. Primeiro tinha que preencher uma ficha que nem dava para acreditar. Uma fotocópia de má qualidade, sumida e reduzida, com montes de dados para preencher que eu asseguro que nenhum idoso conseguiria facilmente preencher. Aquilo era a primeira etapa verdadeiramente kafkiana, passo todo o absurdo da primeira parte da aventura da urgência da situação. Preenchi tudo, sentada a uma mesa que para lá estava. Depois veio finalmente o livro, ao contrário de outras situações que conheço de gente que só por falar brasileiro já não lhe passam o livro, que pena eu não estar lá para chamar um polícia para pegar o livro para nós. Não espero grande coisa daquele livro. Sei que vai vir uma resposta esfarrapadissíma de desculpabilização de toda a incompetência. Talvez mais uma promessa que as coisas estão para mudar. O que até pode ser verdade mas receio que para pior, se é que pode haver pior que isto.

Era para ir ao Hospital São Francisco Xavier, às urgências mas não quis sair de lá com uma gripe em cima e por isso não cumpri o terceiro trabalho na cruzada em defesa da saúde pública. Fui a um centro de enfermagem onde me trataram o pé e me mandaram tomar antibiótico sem poderem passar receita médica, o que está reservado aos médicos. Tive a sorte de ter aquele mesmo antibiótico ainda dentro do prazo de validade.
O meu pé ainda não melhorou, está aqui a latejar, já me caiu o curativo e já fiz outro porque vi fazer e já não preciso lá voltar para isso.
Espero do fundo do coração poder dar uma melhor noite ao meu amor do que lhe dei neste dia tão feliz de velhos namorados para quem um dia feliz de amor é poder estar junto um com o outro, quer de dia, quer de noite.

Para ti, na noite dos namorados

Kaótica, 15/02/2007

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2007-02-12

Amores dos tempos modernos

Imagem retirada daqui
A Joana conversava com a avó. Sentadas num banco de jardim na varanda-miradouro sobre o vale que se estendia a seus pés, discorriam sobre os sobressaltos do coração provocados pelo encontro que estava para ser. A avó aconselhava-lhe prudência. A inteligência e o romantismo dos poemas eram muito importantes, mas a presença física, a empatia entre corpos não era menos extraordinária que a convergência de pensar e as palavras belas em verso. Dar apenas relevo à inteligência era admirável, mas ela já tivera dezassete anos e sabia que uma figura bem apessoada, uns olhos atraentes e um sorriso podiam ter um papel determinante numa relação. Aquilo tinha começado há meses atrás. Joana entrara numa sala de conversação na Internet, numa tarde chuvosa e particularmente aborrecida, para passar tempo e encontrou-se no meio de uma algaraviada de conversas, de que já estava pronta a desistir por desinteressantes, quando o António entrou na sala e quase imediatamente gerou-se uma corrente entre os dois que os levou a afastar-se para um cantinho privado. Desde então, sem marcarem dia nem hora, iam aparecendo regularmente para cavaquearem e, ao fim de pouco tempo, aqueles encontros tornaram-se um hábito diário com dia e hora certas. A avó bem tentava convencê-la que agora tudo acontecia muito depressa, mas nada era diferente de antigamente, embora com outros meios à disposição. Antes, também se escreviam cartas a desconhecidos, por intermédio de amigos de amigos de amigos, de revistas e jornais. Por vezes, ontem como hoje, alguns desses escritos tornavam-se pretextos de entretimento para a alma, outras vezes, ensejos de amizades futuras ou até, em mais raras ocasiões, em casamentos, muitas outras vezes, iam esmorecendo, escasseando as palavras, espaçando o tempo e esqueciam-se em nada.
A Joana teimava. As trocas de palavras tinham tomado um lugar de relevo na sua vida. Da sala de conversação em privado, tinham passado a falar apenas só eles num sítio de mensagens. Entretanto, trocaram os endereços electrónicos e as mensagens choviam com uma persistência pouco habitual. Passados meses, foi o momento do intercâmbio dos números de telemóvel. Todos lá em casa assistiam ao florescer desse amor que, prognosticavam, estava condenado a murchar, mal se encontrassem, mas respeitavam aquele suspirar ausente, as faces afogueadas, as mudanças de humor entre a tranquilidade e as incertezas, a chegada dos telefonemas e do correio electrónico e as esperas. A avó falava longamente com a neta. Também ela tivera, como tantas amigas, um correspondente. Adorava as cartas lidas sofregamente às escondidas, que a sua mãe não tinha a compreensão das mães de agora. Acreditava que os poemas que ele tão bem urdia eram únicos e que ninguém mais no mundo escrevia daquela maneira e só para ela, o que até podia ter sido a verdade mais verdadeira que vivera. Também haviam trocado os números de telefone e a avó vivera a mesma mistura de ansiedade e contentamento que via alvoroçar a neta, ao ouvir a voz de uma imagem que não conhecia. A Joana fizera questão nesse ponto. Não queria conhecer antecipadamente o rosto por trás das palavras escritas e da voz. E era nesse mesmo ponto que a sabedoria da avó a obrigava a reflectir. Mas a Joana ria, com a convicção dos jovens apaixonados e aquele riso devolvido em eco das profundezas do vale, caía em bênção sobre as duas, sentadas no banco verde na varanda alcantilada sobre o vale. A avó recordava-lhe que ela tinha saído para um encontro semelhante ao que ela ia ter no dia seguinte, toda cheia de ilusões, quase sem poder respirar de tanta aflição. Na Praça da Batalha. Quando ela descera do autocarro, ele dirigira-se-lhe como se a conhecesse de toda a vida, com um enorme ramo de rosas vermelhas envolvido num sorriso maravilhoso. A avó confessa que não sabe o que se passou, mas um gesto imprudente da mão à volta do pescoço quebrou-lhe o colarzinho de pérolas brancas que se escaparam pelo empedrado da rua e eles a correr atrás delas, sem conseguir juntar senão uma dúzia delas. O passeio correu muito calmo, no entanto, algo mais se tinha quebrado além do colar e a avó começou a demorar a responder às cartas e já não lhe apetecia atender os telefonemas. Ele, inteligente, como sempre demonstrara ser, compreendeu a mensagem e deixou de lhe escrever. A avó, sorrindo, ainda contou à neta que mantivera ainda com a irmã dele uma correspondência regular até já depois de estar casada com o avô. E nada mais. A Joana não queria saber, agora os tempos eram outros e a mentalidade das pessoas evoluíra. Só lhe pedia que, no dia seguinte, a levasse, de carro, ao Bar do Alex, à Praia de Valadares e logo se via… A avó prometeu e cumpriu. Enquanto seguia a neta com o olhar, vieram-lhe à lembrança as últimas notícias do seu antigo correspondente, notícias de há muito, muito tempo… a irmã, a Teresa, escrevera: ele casara, tinha um filho, era feliz, e pensava nela com muito carinho…
A avó acordou do passado e pôs a carro a andar pela marginal junto às praias. Virou à direita e seguiu para Miramar. No fundo azul clarinho do céu, acima do mar, desenhava-se a Capelinha do Senhor da Pedra e, na direcção do sol, caminhava um parzinho de mãos dadas.

Renda de Bilros, 12/02/2007

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2007-02-03

Carlos

Conheci o Carlos quando atravessava um período difícil da minha vida. Estava numa espécie de limbo entre o desejo de independência e o fracasso impotente do desemprego. O meu corpo estava fechado a sete chaves conservando uma virgindade que já não existia. O meu espírito individualizava-se cioso de não mais sofrer o términos da partilha. Não era feliz, acreditava que a felicidade eram momentos de ilusões que já não tinha. Qualquer olhar de homem era sentido como uma ameaça à falsa estabilidade que projectara. Não havia de ser eu a procurar o que me pudesse vir a magoar. O passar dos anos já me tinha ensinado que não é preciso correr atrás da infelicidade para ela acontecer. Evitava qualquer relação que pudesse vir a ser sentimental, mesmo de amizade. Mantinha para com todos uma cordialidade circunspecta. Distanciava-me sempre que qualquer tipo de envolvimento emocional se pressentisse. Na altura fugia a sete pés das conversas que descambassem na intimidade. Construira a toda a volta uma carapaça de superficialidade que só cedia o estritamente necessário ao bom dia, boa noite de circunstância.

Bom dia, disse-me, ao entrar na sala de espera. Bom dia, respondi num abrir e fechar de olhos. Retirou da mesa uma revista e começou a folheá-la. Involuntariamente observei-lhe um ar risonho, divertido com a revista. Dei por mim a querer pensar como seria cretino ao exibir tanto prazer com a revoltante revista de sala de espera. Às tantas não se aguentou e exprimiu-se numa leve gargalhada. Que entusiasmo, pensei agoniada. Mas aquele homem dirigiu-se a mim como se me conhecesse.
A moda Primavera-Verão é de chorar a rir, já reparou? Mostrou-me uma fotografia de uma mulher camuflada num macacão largo amarelo metálico, o cabelo sintético, os olhos viperinos sombreados de negro, um capacete. Uma diva do século 22, com um ar tão doente e viciado como a Humanidade. Disse-lhe, é o retrato da Humanidade. Mostrou-se interessado pelas minhas cortantes palavras tomando-as como uma definição de Moda, confundindo-as com o início de uma conversa. Dirigia-se-me com um ar tão familiar que subvertia todas as minhas tentativas de me furtar ao diálogo. Quando me perguntou se me estava a incomodar, respondi que não porque apesar de tudo nunca tinha aprendido inteiramente a dizer que não, ao ser abordada de uma maneira tão frontal.
Logo naquela noite sonhei com o homem. Havia um estranho fato espacial que nos envolvia, do qual saíam as nossas duas cabeças, como se pertencessem ao mesmo corpo. Vinha uma corrente de ar e levava-nos pelo espaço insuflados como um balão. Depois subitamente tínhamos os pés unidos e estávamos nus numa terra devastada. Começou a cair muita água em cima de nós e começámos a crescer um para o outro como árvores entrelaçando os nossos ramos agora fortalecidos. A semente estava lançada.
No outro dia acordei diferente. Desconhecia a explicação do sonho mas nem isso me perturbou. Sentia uma alegria inexplicável irradiando de dentro do meu ser e nem procurei explicação.

Mais tarde voltei a encontrar o Carlos. Era uma outra mulher e ele nem sequer se apercebeu da mudança. Cumprimentou-me como se me tivesse visto todos esses dias que passaram. Desta vez sentou-se ao meu lado com a revista na mão e ambos partilhámos a risível intimidade das princesas. Depois desse dia nunca mais nos deixámos de ver.

Kaótica, 03/02/2007

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